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Por Marcos Paulo*

Na última semana, assistimos ao imbróglio entre o presidente Jair Bolsonaro e seu ministro da economia Paulo Guedes. O motivo da desavença foi a proposta apresentada pelo ministério para a criação do Renda Brasil. Bolsonaro ficou descontente com a ideia de cortar alguns programas sociais, a exemplo do Farmácia Popular, e o abono salarial, a fim de gerar recursos para o novo programa. Discordando dessa ideia, o presidente afirmou que não pode tirar de pobres para dar para paupérrimos. 

Paulo Guedes, ao apresentar essa proposta, apenas buscou ser coerente com sua visão de economia e sociedade. Ele é um neoliberal formado na Universidade de Chicago e como todo neoliberal defende a concorrência como norma de conduta e a empresa como modelo de subjetivação. Ou seja, para ele o indivíduo é uma empresa em disputa com outros indivíduos-empresa.

No livro A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal, Pierre Dardot e Christian Laval afirmam: “o neoliberalismo define certa norma de vida nas sociedades ocidentais. [...] Essa norma impõe a cada um de nós que vivamos num universo de competição generalizada, intima os assalariados e as populações a entrar em luta econômica uns contra os outros, ordena relações sociais segundo o modelo do mercado, obriga a justificar desigualdades cada vez mais profundas, muda até o indivíduo, que é instado a conceber a sim mesmo e a comportar-se como uma empresa”.

Nesta lógica, o papel do Estado consiste em apenas criar as situações de concorrência. Não é papel do Estado “tutelar” as pessoas com programas sociais, que são vistos como despesas desnecessárias. Não à toa, Guedes não perde a oportunidade de assegurar seu compromisso com o cumprimento do teto de gastos, mais um legado perverso do golpe de 2016.

Aliás, o economista Ludwig von Mises, um dos ídolos do ministro da economia, conta um fato, em uma de suas palestras proferidas em 1959 na Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade de Buenos Aires, que ilustra muito bem o desprezo neoliberal com qualquer forma de assistência, auxílio ou programa social. Segue o relato:

“Foi um presidente democrata nos Estados Unidos, Grover Cleveland (1837-1908), que, em fins da década de 1880, vetou uma decisão do Congresso de conceder uma pequena soma de auxílio – cerca de dez mil dólares – a uma comunidade que sofrera uma catástrofe. Esse presidente justificou seu veto escrevendo as seguintes palavras: ‘É dever do cidadão manter o governo, mas não dever do governo manter os cidadãos’”. Em seguida recomenda a todos governantes: “estas são palavras que todo estadista deveria escrever numa parede de seu gabinete, para mostrar aos que viessem pedir dinheiro”.

Não me surpreenderia se Paulo Guedes desse essa mesma recomendação a Bolsonaro com relação ao auxílio emergencial, aprovado no Congresso Nacional como uma das medidas de combate a pandemia da Covid-19. Se recomendasse isso, repito, ele estaria sendo apenas coerente com aquilo que acredita. O pior mesmo é a hipocrisia e o mau-caratismo de Bolsonaro.

Bolsonaro não é nem nacionalista e nem patriota como gosta de dizer. Um sujeito que bate continência para a bandeira dos EUA e revela ao ex vice-presidente estadunidense Al Gore, numa cena bizarra e patética em Davos, que gostaria de explorar a floresta Amazônia com os EUA, é tudo menos nacionalista e patriota. 

Bolsonaro não é nem liberal e nem desenvolvimentista e nunca defendeu o Bolsa Família, pelo contrário. Ele é um sujeito que nunca foi comprometido com a defesa da família tradicional e nem com o combate à corrupção e muito menos com os direitos trabalhistas. Sua atuação como parlamentar se reduz a ter ficado quase trinta anos no Congresso como deputado sem nunca ter aprovado nada de relevante de sua autoria. Hoje seu projeto é traçar as melhores estratégias para se manter na presidência. Ele só pensa na reeleição e para isso resolveu se apropriar de programas e obras de governos passados.   

Durante as eleições, Bolsonaro se referiu a Paulo Guedes como sendo seu posto Ipiranga. Dessa forma, conseguiu se eleger presidente com o total apoio do mercado financeiro. Há quem acredite que a campanha do ex-capitão foi construída sobre dois pilares: o liberalismo e a moralidade – Paulo Guedes e Sérgio Moro. (Pausa para rir). Hoje o posto Ipiranga com suas ideias ultraliberais é um empecilho às pretensões eleitoreiras de seu chefe. Vai continuar no cargo? Quem sabe. A vida é dinâmica: ela vai e vem como uma onda do mar.

Bolsonaro encontra-se num dilema: ou Paulo Guedes ou reeleição? A resposta é não, pois ele não tem coerência nenhuma. Já o Paulo Guedes vive seu dilema: abrir mão dos princípios neoliberais que tanto acredita ou continuar no governo, que agora, por questões eleitoreiras, quer se apresentar ao povo com um viés desenvolvimentista e sensível às questões sociais? 

Moral da história: Paulo Guedes é um neoliberal coerente; já Bolsonaro utiliza-se da incoerência como estratégia política. De fato, mantendo-se incoerente, Bolsonaro surfa na onda que no momento mais convém. A incoerência para ele é uma estratégia política.

* Professor de História.