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Por
Marcos Paulo*
No ensaio Reificação: um estudo de
teoria do reconhecimento, Axel Honneth atualiza e reafirma a noção de
reificação como algo capaz de iluminar nossa compreensão acerca das diversas
formas de dominação vigentes. Sua investigação tem como ponto de partida o
conceito de reificação proposto por Georg Lukács em seu livro História e
consciência de classe de 1923. Honneth, a fim de “saber se cabe ao
conceito de ‘reificação’ um valor útil ainda nos dias de hoje”, orienta-se, de
início, “pelas análises clássicas de Lukács”, constatando, porém, que “os meios
categoriais [de Lukács] não são suficientes para poder conceber de maneira
adequada os processos frequentemente apreendidos de maneira correta em termos
fenomenológicos” (HONNETH, 2018, p. 31). Seria, portanto, necessário superar as
incongruências da noção lukatiana de reificação para poder reafirmar a
atualidade desse conceito tão caro à Teoria Crítica. Dessa forma, Honneth
promove, segundo Judith Butler, “o mais amplo e profundo ajuste de contas com
Lukács visto nos últimos anos sobre o tema da reificação” (BUTLER, 2018, 133).
Proponho, neste texto, fazer uma breve
reflexão sobre se é possível estabelecer alguma relação entre certos
comportamentos comuns nas redes sociais com as dimensões intersubjetiva e subjetiva
da reificação; bem como, seus efeitos para o debate público e democrático. Para
tanto, irei explicar, sucintamente, os fenômenos da reificação intersubjetiva,
objetiva e subjetiva; em seguida, mostrarei como a reificação se presentifica
nas redes sociais e, por fim, apontarei alguns efeitos positivos e negativos da
linguagem digital para a democracia.
De fato, em Lukács a reificação não é
uma ferida moral, mas sim uma anomalia que se expressa em certo tipo
de práxis humana ou atitude, que “constitui a racionalidade de nossa forma de
vida” (HONNETH, 2018, p. 29). Que atitude é essa? Sinteticamente, é o
comportamento pouco ou nada engajado com o mundo (reificação objetiva), com as
pessoas do mundo (reificação intersubjetiva) e consigo mesmo (reificação subjetiva).
Ou seja, diante dos problemas do mundo, a postura adotada pelo sujeito
reificado é a de ser um mero observador passivo. Assim sendo, “Lukács
compreende sob o termo ‘reificação’ o hábito ou costume de um comportamento
meramente observador, em cuja perspectiva o mundo circundante natural, o mundo
das relações sociais e as próprias capacidades pessoais são apreendidos apenas
com indiferença e de um modo neutro em relação aos afetos, ou seja, como se
possuíssem as qualidades de uma coisa” (HONNETH, 2018, pp. 36-37).
Se a reificação é uma atitude passiva e
desengajada, a pergunta que fica é: qual seria a etiologia social dessa
atitude? Honneth afirma que é o esquecimento do reconhecimento
prévio. No caso da reificação intersubjetiva, o reconhecimento esquecido é
o intersubjetivo; ou seja, perde-se de vista o fato de que todo indivíduo se
constitui enquanto sujeito autorrealizado, isto é, sujeito que possui uma
imagem positiva de si, mediante um processo de interação com os outros, no qual
ele espera deles o reconhecimento de sua individualidade. Esse esquecimento
está na raiz, por exemplo, do racismo, da misógina e da homofobia, onde é
negada ao indivíduo a sua condição de pessoa humana merecedora de confiança,
respeito e autoestima. “Desse modo se cria um sistema comportamental que
permite tratar os membros de determinados grupos de pessoas como ‘coisas’
porque seu reconhecimento prévio foi posteriormente negado” (HONNET, 2018, p.
125).
Até aqui tratamos da reificação
intersubjetiva, realidade na qual as pessoas, devido ao esquecimento do
reconhecimento intersubjetivo, são tratadas como coisas. Dela decorre
a reificação objetiva, que ocorre quando a negação da humanidade do outro
coloca o sujeito reificado numa posição de também negar os significados que os
seres humanos atribuem à natureza. O efeito dessa negação é tratar a natureza
como uma simples coisa a serviço dos interesses humanos. Por fim,
a reificação subjetiva, ou autorreificação, consiste na incapacidade
do sujeito em articular seus sentimentos e desejos como algo inerente ao seu
psiquismo. Ao negar que esses sentimentos e desejos são parte de sua
constituição psíquica e responde a sua estrutura faltosa (condição inerente a
todo ser humano), o sujeito reificado passa a tratá-los, ou como simples
objetos passíveis de serem observados, ou como algo que é produzido a fim de
atender determinada exigência social.
No tocante a exigência social, Honneth
nos lembra que, ao buscarmos as causas da autorreificação, encontraremos
aquelas situações em que se exige dos sujeitos um modo específico de se
autoapresentarem. Com isso, afirma um dos nomes mais importantes da Teoria
Crítica nos dias atuais, “todos os arranjos institucionais que coagem de forma
latente os indivíduos a meramente dissimular ou fixar conclusivamente
determinados sentimentos estimulam a disposição para a formação de
comportamentos autorreificadores” (HONNETH, 2018, p. 126). Aqui Honneth vincula
a tendência a atitudes reificantes à existência de “práticas ou estruturas
sociais que tal tendência promove ou origina” (2018, p. 116). Como exemplo ele
cita as entrevistas de emprego, nas quais o candidato precisa encenar da
maneira mais convincente e eficaz possível seu interesse em se engajar no
trabalho futuro. A busca por parcerias amorosas na internet, em que os
usuários registram suas características de acordo com um padrão comportamental
pré-estabelecido, é outro exemplo. Nos dos casos, os desejos e sentimentos do
sujeito são artificialmente produzidos, pois só assim ele irá alcançar o
objetivo almejado.
Atualmente, assistimos nas redes
sociais o fenômeno da “cultura do cancelamento”, um verdadeiro tribunal virtual
encarregado de demolir reputações diante do mínimo deslize cometido. É claro
que muitos cancelamentos contam com o aval de movimentos sociais como o MeToo e
o Black Lives Matter; porém, o que mais se vê é a mobilização de uma quantidade
absurda de usuários das redes empenhados em promover justiçamento virtual. As
“vítimas” são artistas, intelectuais, influenciadores digitais, personalidades
públicas, que são cancelados porque acabaram tendo um comportamento inadequado,
segundo a perspectiva dos justiceiros. Ou seja, foram cancelados porque não
seguiram o padrão comportamental pré-estabelecido. As consequências do
cancelamento para a vítima vão de estragos leves (pequenos arranhões na sua
imagem), passando por danos médios (perda financeira ou prejuízo profissional),
à perdas graves (carreira profissional comprometida).
Às vezes a pessoa atingida consegue se
reerguer, como foi o caso da cantora de funk Anitta. Ela foi acusada de falsa e
traidora depois que áudios seus falando mal de outras artistas, amigas suas,
foram vazados. A artista entrou na justiça, conseguiu suspender a divulgação
dos áudios e depois começou a fazer lives de política e questões
ambientais nas redes sociais, com bastante sucesso (um verdadeiro prodígio!).
Já a influencer Gabriela Pugliesi não teve a mesma sorte: depois de
promover uma festa de arromba em meio a pandemia do novo coronavírus, foi
linchada impiedosamente, perdendo seguidores e patrocínios importantes. Nem
mesmo a historiadora e antropóloga Lília Schwarcz foi perdoada: após publicar
um texto na Folha de S. Paulo criticando o novo trabalho da cantora
estadunidense Beyoncé, foi acusada de (se segurem na cadeira para não cair)
racista. Poderíamos dizer que a “cultura do cancelamento” é, de
certa forma, a radicalização da “lacração” e da “mitagem”, na medida em que
esses dois últimos fenômenos consistem em silenciar o outro com um argumento ou
uma “tirada” supostamente incontestáveis.
Prosseguindo a nossa “busca
arqueológica” desses fenômenos típicos das redes sociais, chegamos nas
“curtidas” e na formação de bolhas virtuais. Ao se apresentar nas redes sociais
por meio de algum registro (audiovisual, texto ou imagem), o/a usuário/a das
redes fica esperando a reação de seus seguidores ou curiosos, reação de
preferência positiva. Isso acontece porque para muitos deles e delas é
inquestionável a seguinte certeza: “curtiram-me, logo sou e existo”. São
pessoas que se auto-enganam com o retorno positivo de seus seguidores e afins.
Não basta se sentirem bem e felizes: é preciso que alguém confirme para elas
esse seu estado de espírito. Usando do mecanismo da inclusão e exclusão de
“amig@s”, engajam em seus perfis somente aqueles e aquelas que compartilham
conteúdos que também são os seus, criando verdadeiras bolhas virtuais. Essas
bolhas seguem, de certa forma, a lógica do condomínio proposta pelo
psicanalista Christian Dunker, na qual se cria uma “região [neste caso um
espaço virtual], isolada do resto, onde se poderia livremente exercer a
convivência e o sentido de comunidade entre iguais” (DUNKER, 2015, p. 47).
Assim, se por acaso algum engraçadinho entra no meu perfil no facebook ou no
grupo de whatsapp em que participo somente para compartilhar conteúdos
incompatíveis com minha maneira e a de meu grupo de pensar, sentir e agir, ele
será imediatamente eliminado, isto é, banido como um verdadeiro escroto que não
merece meu reconhecimento e nem do meu grupo de iguais. Por outro lado, se sou
engajado em um perfil de alguém ou participo de algum grupo de pessoas
desprezíveis, imediatamente “saio” desses ambientes tóxicos.
De tudo que foi dito até o momento,
podemos concluir que o uso tóxico das redes sociais pode sim potencializar em
seus usuários comportamentos e atitudes reificantes, seja porque, uma vez
desejando “curtidas” em suas postagens, ou temendo serem canceladas pelo
tribunal virtual, apresentam-se nas redes com um falso self, porém
estratégico na sua busca incessante por reconhecimento nas redes, seja porque
negam as qualidades de todos aqueles que não compartilham de seus ideais,
anseios, desejos e visões de mundo, eliminando-os de seu convívio virtual. No
primeiro caso, temos um exemplo de autorreificação; no segundo,
de reificação intersubjetiva. Se a vida imita a arte, ela está também
imitando a lógica e a linguagem das redes sociais; e é aqui que mora o perigo
para o debate público e democrático.
As redes sociais possuem um potencial
bastante grande de ampliar os espaços do debate democrático. As pessoas podem
buscar ali meios de se qualificar para os embates e disputas políticas,
compartilhando e produzindo conteúdos de interesse público e representativos
para vários setores sociais, que foram e continuam sendo silenciados ou pouco
ouvidos pelos grandes conglomerados de comunicação. Municiados com mais
informações, podem fazer escolhas e tomar decisões mais acertadas, como, por
exemplo, no momento das eleições. As redes sociais são também espaços de
mobilização e servem às estratégicas de produção de tecnologias de si, ou seja,
técnicas por meio das quais os sujeitos intervém no próprio corpo e pensamento
a fim de realizar desejos e ideais almejados. Não podemos esquecer que a luta
política não se reduz em apenas lutar contra as formas de dominação e
exploração, mas também contra as formas de subjetivação dos indivíduos. A
subjetivação como estratégia de dominação consiste no uso de tecnologias a fim
de conduzir as condutas dos indivíduos mediante a imposição de normas sociais
supostamente universais, naturais e científicas. Acredito que a superação do
neoliberalismo pressupõe e significa a subversão da competição como norma de
conduta e da empresa como modelo de subjetivação (DARDOT; LAVAL, 2016).
Porém, a lógica e linguagem das redes
sociais podem se tornar obstáculos que bloqueiam a ampliação da democracia, na
medida em que reduz o poder e a circulação da palavra. Não há democracia sem a
valorização das diferenças. Ela é o espaço do embate, do conflito e da
indeterminação, de modo que todo tipo de norma que contribui para a redução
desse espaço serve aos interesses da dominação e não da emancipação. Negar a
política significa negar o conflito; e existem várias meios de se promover essa
negação: escondendo-se atrás de um perfil falso nas redes sociais, banindo do
debate as diferenças, recorrendo ao uso de mentiras como estratégia de
dominação política etc. Precisamos criar lugares de escuta do contraditório e
não se deixar seduzir pela polifonia de vozes autoritárias e de malemolência
cínica. Cabem as esquerdas e aos setores progressistas pensar estratégias de
atuação nas redes sociais, tendo como horizonte a emancipação, sobretudo nesse
tempo em que a extrema direita fascistoide está vencendo por W.O a batalha nas
redes.
*Professor
de História, Filosofia e Sociologia
REFERÊNCIAS
BATISTA
João Jr; MARTHE, Marcelo. “Supremo tribunal virtual”.
In: Revista Veja, Editora Abril, ed. 2697, ano 53, nº 31, jul., 2020, pp.
58-63.
BUTLER,
Judith. “Adotando o ponto de vista do outro: implicações ambivalentes”. In:
HONNETH, Axel. Reificação: um estudo de teoria do reconhecimento.
São Paulo: Editora Unesp, 2018, pp. 133- 162.
DUNKER,
Cristian Ingo. Mal-estar, sofrimento e sintoma: uma psicopatologia do
Brasil entre muros. São Paulo: Boitempo, 2015.
HONNETH,
Axel. Reificação: um estudo de teoria do reconhecimento. São Paulo:
Editora Unesp, 2018.
LEMKE,
Thomas. “Uma analítica do governo”. In: Foucault,
governamentalidade e crítica. São Paulo: Editora Filosófica Politeia, 2017, pp.
10-33.
https://theintercept.com/2020/07/21/batalha-redes-extrema-direita-esquerda/
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