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Por Saiure Ribeiro*

Existe presente em nosso imaginário o que é o “sertão” e o que é a “mulher”. Imagens, sons, palavras, tudo que habita nossas mentes define esses termos. E quando essas duas palavras se juntam formando “mulheres do sertão”, encontramos, então, uma particularidade, que perpassa gerações, formando uma identidade própria e específica das mulheres do nordeste, que nem sempre corresponde à realidade dos fatos.

No livro História das Mulheres no Brasil, organizado por Mary Del Priore, a historiadora Miridan Knox Falci contribui com o texto “Mulheres do Sertão Nordestino”. Utilizando como fonte cordéis, testamentos, inventários e livros de memória, ela busca apresentar as mulheres, especificamente, mulheres de todas as classes socias (ricas, pobres, livres e escravas) do sertão do Piauí, no século XIX.

Falci fala sobre os diversos aspectos da vida das mulheres que viveram nesse período: a fisionomia, as atividades exercidas, os costumes e as obrigações impostas. Ou seja, as representações do gênero, o que é ou deveria ser a “meninu fêmea”. Em seu texto, descreve D. Maria Joaquina, mulher da elite, que vive de acordo com o esperado de uma mulher nordestina, isto é: “fisionomia austera, de comando, sem nenhum sorriso ou alegria nos lábios e rosto, cabelos presos singelamente num coque sobre a nuca, vestido preto de mangas cumpridas (já que recato era um dos valores mais cultivados) e muitas joias” (FALCI, 2006). Essa representação e imposição da mulher nordestina com seriedade, um ser embrutecido, de pouco afeto e sexualidade foi o mecanismo encontrado para perpetuar a submissão da mulher, que no sertão é o outro do homem, é a mulher macho.

Nessa perspectiva, a mulher macho não é um elogio, ela não se iguala a figura do homem, ela é uma caricatura do homem. Ela, apesar dessas caraterísticas “masculinas”, continua sendo uma mulher, e assim sendo, continua inferior, mesmo quando anda lado a lado desses homens. Podemos observar esse fato no documentário “Feminino Cangaço”, produzido pelo CEEC (Centro de Estudos Euclydes da Cunha), quando ouvimos Dadá falar que o respeito ao marido era a principal virtude que as cangaceiras deveriam ter.

Outro aspecto da conduta da mulher do sertão nordestino que merece atenção é o casamento. Falci vai dizer que “no sertão, a preocupação com o casamento das filhas moças foi uma constante”. A mulher que não se casasse antes dos 25 anos estava fadada a ser intitulada como “moça-velha”. A instituição do casamento assegurava às mulheres um local social benéfico, de status e prestígio. Nessa época, casar era um acordo social. É importante destacar que até hoje o casamento ainda é considerado dessa maneira.

Mas essa imposição do casamento nem sempre era recebida de maneira submissa: no século XIX, muitas mulheres, ao serem obrigadas a se casar com homens que tinha um acordo com sua família, fugiam com outros rapazes que realmente gostavam. A prática descrita como rapto consentido, poderia significar as ideias de liberdade e de vontade própria.

Em “Feminino Cangaço”, essa prática é apresentada no contexto do século XX, quando as mulheres adentraram nos grupos de cangaceiros. Adília, mulher de Canário, na busca por mais liberdade, diz que foi com ele, porque seu pai era muito rígido. Em outros casos, como o de Dadá e de Sila, as mulheres foram obrigadas a ir com os cangaceiros, mas ao longo da convivência consentiu o rapto. No caso de Maria Bonita, o historiador Luiz Rubens Bonfim diz, em tom de brincadeira, que foi ela que raptou Lampião.

É importante frisar que essa liberdade e consentimento, vistos pelos historiadores, nem sempre se traduz na realidade, pois essas mulheres no cangaço, caso voltassem para casa, seriam rechaçadas publicamente, e poderiam, inclusive, serem mortas.

Voltando para as representações de gênero do que é ou deve ser uma mulher e, mais ainda, o que é ou deve ser uma mulher casada, temos uma quebra desse paradigma ao lermos o artigo “A casamenteira e o artista: por outras representações de gênero no sertão”, das professoras Cláudia Pereira Vasconcelos e Vânia Nara Pereira Vasconcelos. Diante das representações do que é uma mulher, as autoras apresentam Dona Farailda, uma senhora de 88 anos, de Serrolândia, que está em seu sétimo casamento. Ora, se casar moça é o pressuposto para uma mulher ter prestígio, Dona Farailda se esquiva dessa regra.

Mas é preciso atenção nesse sentido: a sexualidade da mulher nordestina é regrada, qualquer uma que fuja da regra é vista como “promíscua”. A própria Dona Farailda, que diz gostar de sexo e, por isso, ouve das amigas que ela “parece macho”, afirma que nunca o fez fora da instituição do casamento, mesmo tendo se casado tantas vezes. Vemos, portanto, que da mesma forma que no século XIX, a função da mulher era ser “mulher-esposa”. Ainda é assim na contemporaneidade, pois o discurso que ainda predomina no interior da estrutura patriarcal é o que afirma que o “lugar de mulher honesta é no lar”, ou seja, dentro do espaço privado, dentro de um casamento, sob o domínio de um homem.

Nem as mulheres do século XIX, ricas ou pobres, nem as mulheres do século XX, cangaceiras ou não, fugiam das obrigações do casamento, quais sejam: a de ser a mulher do lar e a de respeitar, quase que de maneira devocional, os homens. 

As mulheres do sertão são, acima de tudo, mulheres. E, dentro da construção da sociedade brasileira, a elas são relegados os espaços subalternos. Sendo preciso lidar com o machismo, elas puseram uma carapaça masculina, construindo o estereótipo da mulher macho, esta que é dura, séria e brava. É inegável que, ao longo da vivência das mulheres no sertão, essas características não aparecessem, mas é importante observar que elas não se restringem a isso. É necessário um olhar atento para essas questões, os textos sobre as mulheres aqui apresentados e o documentário mostram as diferentes facetas, é preciso observar e analisar todas elas. As mulheres do sertão nordestino são capazes de amar como Dona Farailda ou de matar como Dadá.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

FALCI, Miridan Knox. “Mulheres do sertão nordestino”. In: Priore, Mary. História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2006.

VASCONCELOS, Vânia Nara Pereira. VASCONCELOS, Cláudia Pereira. A casamenteira e o artista: por outras representações de gênero no sertão. Revista Feminismos. Vol. 6, N,3, set – dez, 2018. p. 132-142

FEMININO Cangaço. Produção de Centro de Estudos Euclydes da Cunha e Núcleo de produção audiovisual. Direção de Lucas Viana e Manoel Neto. Salvador: CEEC, 2016. (75 min.). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=wsTCQ7LOeds&t=887s&ab_channel=CEEC-CentrodeEstudosEuclydesdaCunha   


* Graduanda em História pela Universidade de Pernambuco.