Andor com a imagem de Nossa Senhora do Rosário

A pandemia da Covid-19 trouxe novos desafios para humanidade neste ano de 2020. Planejamentos tiveram que ser refeitos. Incertezas com relação ao futuro revelaram para muita gente o quanto as pessoas são frágeis. As expressões que ganharam a boca do povo no mundo todo foram: “mantenha o distanciamento social”; “evite o contato, porque assim você se protege e protege os outros” e “se puder, não saia de casa”. Essas foram e continuam sendo as recomendações da ciência e dos especialistas. De fato, proteger e cuidar da vida das pessoas deveria ser a prioridade de todos os governos e governantes. Apesar disso, a insanidade e a indiferença de muitos deles, a começar pelo presidente do Brasil, trouxeram mais dor, abatimento e confusão. Confundir para dividir: essa foi a estratégia daquele que ocupa o cargo público mais importante do país. Estratégia que corrompe totalmente o princípio que conduziu a conduta do bom samaritano ao ver, sentir compaixão e cuidar do outro (Lc. 10, 33-34).

Quando Jesus conta a parábola do bom samaritano para o doutor da lei, seu objetivo foi mostrar para ele que o amor é uma prática concreta. Não basta saber que o amor total a Deus e ao outro é que leva à vida: é preciso vivenciar diariamente este saber, tornando-se o próximo para aquele que necessita de cuidado e proteção. Todavia, esta não foi a atitude do presidente do Brasil, que, diante daqueles e daquelas que perderam seus entes queridos para a Covid-19, tripudiou da doença, chamando-a de “gripezinha”, e não segue as recomendações médicas de manter distanciamento e evitar aglomerações.

É neste cenário de incertezas e muita angústia que os planejamentos tiveram que ser refeitos. Como não poderia ser diferente, o mesmo aconteceu com a festa em honra à Nossa Senhora do Rosário, que neste ano aconteceu em caráter excepcional e extraordinário. O novenário que junta milhares de devotos e devotas em frente à praça da Igreja Matriz teve que ser realizado sem a presença física dos fiéis. A procissão que todos os anos mobiliza mais da metade dos habitantes da cidade, que participam dela para agradecer, fazer promessas e “pagar promessas”, ficou reduzida a uma carreata que percorreu as principais avenidas da cidade. Desta vez os devotos e devotas de Nossa Senhora do Rosário acompanharam o andor com a imagem da santa das varandas e calçadas de suas casas.

Na missa de encerramento dos festejos da padroeira, neste dia 30/10/2020, o bispo da Diocese de Juazeiro, Dom Carlos Alberto Breis Pereira, afirmou que o mundo vive “um tempo incômodo e extraordinário”. A marca deste tempo é o imprevisível. Imprevisibilidade que produz incômodo e vulnerabilidade. Num país de tantas pandemias, destacou o bispo, a Covid-19 é mais uma que gera sofrimento e exclusão. Porém, advertiu o pregador, os discípulos de Jesus não devem estranhar a vulnerabilidade humana, mas sim perscrutar e interpretar os sinais de Deus. Para isso, é preciso consultar o silêncio. É legítimo, para aqueles que creem, se questionar: “Senhor, por que silenciastes? Por que te calas?”. No entanto, precisam saber que, “se Deus se silencia, Ele jamais se ausenta”, garantiu Dom Carlos Alberto. Saber silenciar diante do mistério, porque o “silêncio é mais uma forma de oração”.

Dom Carlos Alberto Breis Pereira, bispo da Diocese de Juazeiro

Mas esse tempo é também “tempo de intensidade espiritual, de rezar mais”. “Tempo da busca pelo essencial”. Para os seguidores e seguidoras de Jesus, “é tempo de recolocar Jesus no centro de suas vidas”. “Tempo de grandes perguntas, mas de retirar muitas lições”. “Tempo de se aproximar do Senhor e dos outros”, refletiu o bispo diocesano.

Um dos desafios que sempre provocou a humanidade é o de como manter a esperança em meio a tantos sinais de incertezas e desalento. No Antigo Testamento, o povo de Deus fazia isso relembrando as histórias sobre a sua libertação do jugo dos egípcios: “lembrem-se: você foi escravo na terra no Egito, e Javé seu Deus o tirou de lá com mão forte e braço estendido” (Dt. 5, 15). De fato, a história das lutas, conquistas e memórias de um povo traz o alento necessário para a difícil travessia pelos desertos da vida. 

Um pouco de história e memória

Uma personagem central na história de devoção à Nossa Senhora do Rosário em Remanso é o missionário Pe. Henrique José Cavalcante, como conta o historiador Francisco José P. Cavalcante no livro “Pe. Henrique José Cavalcante: o mestre da caridade”. Pe. Henrique ajudou a reconstruir a Igreja Matriz da cidade velha, hoje submersa nas águas do rio São Francisco. As obras começaram no ano de 1882 com o objetivo de ampliar a igreja, que até então era “apenas uma capelinha dotada de uma sacristia arruinada”. A inauguração da igreja, ainda incompleta, ocorreu no ano de 1894.

Capa do livro do historiador Francisco José sobre Padre Henrique Cavalcante

Fontes orais asseguram que Pe. Henrique “era um homem abusado”. Essa era a maneira do povo descrever um sujeito que era “determinado, exigente e sistemático” – mas também profeta. Ele profetizou que em cem anos, após a inauguração da igreja, a cidade de Remanso se transformaria numa verdadeira “cama de surubim”. Por isso, tentou construir a igreja distante do Velho Chico. Não conseguiu, “pois os recursos para a mencionada construção dependiam de alguma forma de uma mulher rica – ou mesmo das ‘pessoas gradas’ responsáveis pelo convite para a realização da obra”. 

Segundo Francisco José, “o padre queria construir [a igreja] em lugar distante do rio, todavia foi pressionado a ampliar a antiga capela”. Foi no discurso de inauguração que ele teria feito a profecia de que Remanso seria inundado (como de fato aconteceu devido a construção da Barragem de Sobradinho) pelas águas do São Francisco.

O casal Dona Concita e Seu Edson lembram dessas histórias contadas sobre Pe. Henrique. Na antiga cidade de Remanso, a novena de Nossa Senhora do Rosário ocorria dentro da igreja. No lado de fora, no pátio, aconteciam movimentos e apresentações, como, por exemplo, as quermesses e os ternos. Dentro da igreja, havia a separação entre homens e mulheres. Essas sentavam nos bancos de trás, aqueles nos da frente. Dona Concita lembra que quando criança, admirava um casal que sempre chegava à igreja de mãos dadas e estranhava o fato de que, quando entravam na igreja, se separavam.

Dona Concita e Seu Edson

A ladainha a Nossa Senhora era cantada em latim e os pregadores eram padres que vinham de outras cidades. Devido à falta de padres (em uma determinada época, a cidade ficou sem padre por dez anos) eram os leigos e leigas, organizados em associações e irmandades, que preparavam e realizavam as novenas. A população da tranquila cidade do norte da Bahia era praticamente toda católica.

Muita coisa mudou com o Concílio Vaticano II, como, por exemplo, as celebrações em latim e a separação de homens e mulheres. Foi criada a Diocese de Juazeiro (antes a paróquia de Remanso era vinculada à Diocese da Barra) e o primeiro bispo foi Dom Tomáz. Suas visitas à cidade eram motivo de feriado e todos se preparavam para recebê-lo.

Dona Concita e Seu Edson destacam o trabalho das missões redentoristas no fortalecimento da fé do povo nos períodos em que a paróquia ficava sem padre. Relatam que, em Remanso Velho, havia a peregrinação da imagem de Nossa Senhora do Rosário, carregada nos ombros dos fiéis, que a conduziam pelas ruas escuras da cidade.                  

É tempo de agradecer

De fato, como bem lembrou padre Aluísio Borges, pároco da paróquia de Nossa Senhora do Rosário, “a pandemia da Covid-19 trouxe para humanidade novos desafios, além de expor, ainda mais, as imensas desigualdades sociais do nosso país e ressaltar as nossas fragilidades”. Por causa da doença, “foi preciso parar, refletir e, sempre com muita oração, decidir qual a maneira mais racional e segura de realizar o maior evento religioso da região”. Depois de muito ouvir as autoridades no assunto, a comunidade decidiu pela realização dos festejos sem a presença física dos fiéis. Porém, ressaltou padre Aluísio, “essa ausência foi apenas física, pois sempre é possível sentir a forte presença da nossa comunidade nas nossas missas e celebrações através dos meios de comunicação disponíveis”.

Padre Aluísio Borges, pároco da paróquia de Remanso

Para ele, apesar dos festejos deste ano terem sido em caráter excepcional e extraordinário, o empenho, zelo e dedicação da comunidade, em especial dos jovens, possibilitaram oferecer a Nossa Senhora uma linda festa. Dessa forma, esse tempo é também “tempo de agradecer”.

Agradecer os gestos generosos das equipes de liturgia, de ornamentação, de animação, do dízimo, da comunicação e da sonorização. Todas as pessoas benfeitoras, que contribuíram com a organização, as despesas financeiras e as doações de alimentos. A equipe que viabilizou a peregrinação da imagem da padroeira pelas ruas da cidade. E sobretudo o trabalho e empenho da juventude da paróquia, que, segundo padre Aluísio, sem seus esforços, neste contexto de pandemia, “dificilmente esses festejos teriam sido realizados da forma como foi”. Ele fez um agradecimento especial aos jovens da Pastoral da Comunicação, “que se empenharam na busca das parcerias que viabilizaram a transmissão de toda a festa”. 

Primeiras impressões

Para Norberto, articulador das comunidades do interior do município de Remanso, os festejos foram muito proveitosos em vários sentidos. “No caso das comunidades do interior, por conta das limitações, foi dada aquela sugestão da peregrinação da bandeira com a imagem de Nossa Senhora nas famílias. E isso, segundo os comentários das comunidades, foi bastante proveitoso, porque as famílias se reuniram e agradeceram, porque nem todos tem acesso às redes sociais. Então uma das formas de também participar da festa de Nossa Senhora foi através da reza do terço nas famílias. E quem teve a oportunidade de acompanhar nas redes sociais certamente só tem dito coisas positivas. É claro que dentro das possibilidades e das condições que a paróquia tem no momento. Então, no geral, a festa foi de suma importância e com um aproveitamento muito bacana”.

Já para Neidimaria, vice coordenadora da catequese, “o novenário, apesar da pandemia, foi participativo. Os noiteiros fizeram o possível para manter todo aquele fervor da organização e da participação. O triste só foi a praça vazia. Essa praça vazia sem a quantidade de fiéis. Mas eu ouvi muita gente falar: ‘muita gente não pôde vir, mas Nossa Senhora foi até ele’. Então isso foi um momento lindo [referindo-se à peregrinação da imagem da Santa pelas ruas da cidade]; foi um momento que deixou as famílias reanimadas na fé. E graças a Deus eu acho que para esse ano, mesmo com esse momento, a gente conseguiu ter uma festa bonita; uma festa tocante”.

Por fim, na opinião de Alessandro Paes Landim, diretor de programação da Rádio Comunitária Zabelê FM, “a festa foi muito boa e maravilhosa, apesar do momento em que nós estamos vivendo. Mas é assim: é um momento de reaprender. É um momento também da gente avaliar as nossas ações. E falando sobre a festa de Nossa Senhora do Rosário, falar sobre esse momento de você servir e saber o que é servir diante de todos os nossos irmãos que sofrem. E a gente passa a lembrar também do nosso sofrimento interno. Mas a festa foi maravilhosa e todo mundo, dentro das suas limitações, conseguiu vencer mais uma vez e a cada dia a gente vai aprendendo também a superar os limites”.  

Essas falas todas sintetizam a festa de Nossa Senhora do Rosário, neste ano de 2020, como um momento de agradecimento, questionamento e silêncio, bem como de aprender a reaver atitudes e escolhas feitas. E como disse Pe. Aluísio Borges, “ano que vem, se Deus quiser e a humanidade cooperar, estaremos mais uma vez juntos e reunidos na praça, comemorando a travessia de mais um deserto, junto com Jesus, Maria e José".

Texto e imagens: Aroeira Comunica.