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Diversos e Livres

Por Ivânia Freitas*

“O DILEMA DAS REDES” é o nome de um documentário lançado pela Netflix neste ano de 2020. Quando o assisti fiquei espantada. Não foi um espanto pelo encontro com o desconhecido, mas pelo confronto de “coincidências” que vi entre o documentário e a minha tese do doutoramento, na qual discuti a educação do campo no contexto da cultura digital.

Em 1h34m fiquei meio que em choque! Vi nos depoimentos dos entrevistados, o debate que fiz em mais de 200 páginas, das 447 que escrevi na minha tese. Se não a tivesse escrito nos últimos quatro anos e defendido antes de 9 (nove) de setembro de 2020, quando o documentário foi lançado, todo o meu trabalho poderia ser interpretado como plágio!

O documentário reúne ex-funcionários e executivos de empresas como Google, Facebook, Twitter, Pinterest, Instagram e outros tantos gigantes da internet, incluindo especialistas que expuseram os bastidores das redes sociais.

Assim como busquei abordar na tese, o documentário apresenta o papel das redes sociais na manipulação dos comportamentos, mostrando como elas instigam o excessivo consumo a partir de uma série de estratégias de controle sobre nossas informações e gostos.

Na dinâmica das redes, os usuários são o produto vendido para grandes empresas. De posse do nosso perfil (gostos e preferências), as redes sociais fornecem dados para as grandes empresas e estas investem em vários tipos de produtos que voltam para serem anunciados por estas mesmas redes, que tem o papel de nos incentivar a consumi-los.

Nesse ciclo de manipulação, elas se apropriam das informações que deixamos gravadas nas nossas contas e montam uma série de estratégias que direcionam para onde devem ir nossos gostos, opiniões, sensações, valores e sentimentos, criando assim, um perfil de consumidor, fazendo de nossas vidas, insumos para o mercado criar produtos que, supostamente, nos farão felizes e atenderão as nossas necessidades.

Todos nós já passamos pela experiência de que, quando menos esperamos, aparece no aplicativo de música uma “sugestão” de uma playlist para ouvir ou de uma pessoa para adicionar aos amigos do Facebook, do Instagram, sem falar na enxurrada de propagandas que aparece no feed das nossas redes, anunciando  algo relacionado ao que pesquisamos em algum  site e até mesmo de algo que conversamos no bate papo com alguém.

 A pesquisadora Zuboff, que é professora titular na Harvard Business School, uma das entrevistadas no documentário, chamou essa lógica de capitalismo da vigilância, o qual mercantiliza a experiência humana e se sustenta na exploração da vulnerabilidade das pessoas. Para a estudiosa, a grande indústria das tecnologias atua não só prevendo o perfil do consumidor para vender às empresas, mas para modificar, em grande escala, os comportamentos humanos.

As nossas vulnerabilidades geram os produtos a serem consumidos por nós, que aparecem como respostas aos vazios e necessidades que nunca são preenchidos porque sempre aparecem outros desejos, outras necessidades, que, na lógica do capitalismo, só podem ser supridas se você possuir “coisas” que socialmente estejam em visibilidade ou na moda.

Esse controle do mercado sobre nós só é possível porque todas as vezes que acessamos as redes sociais estamos sendo monitorados bem de perto! Cada curtida, cada foto que tiramos e postamos, cada página que abrimos, vídeos que assistimos, conversas que temos nos aplicativos de bate papo e até mesmo perto dos celulares (ainda que off-line), são vigiadas.

Como não podia deixar de ser, o documentário expõe também como as redes sociais estão interferindo na condução da sociedade, quais efeitos elas exercem nas democracias, na política, com especial destaque às fake-news e seu uso para gerar conflitos politicamente planejados.

Dois pontos são centrais no debate e nos chama a atenção:

O primeiro é o caráter do vício, do controle que essas tecnologias exercem, sobretudo, nas gerações mais novas, que estão completamente imersas nas redes digitais, horas a fio, tornando-se mais expostas aos adoecimentos como ansiedade, depressão, automutilação e até mesmo o suicídio.

Contudo, chamamos a atenção para o fato de que, tanto adultos como crianças, estão expostos aos efeitos que as redes sociais produzem nas questões mais íntimas dos seres humanos, elas mexem com a autoestima, expõem fragilidades, estabelecem padrões de comportamentos e de relacionamentos e tudo isso afeta de forma intensa a vida de todos e vai dando outros rumos à coletividade.

O segundo é que na era das redes sociais vemos nascer uma sociedade desmobilizada, com pessoas cada dia mais apartadas de sua essência, de suas capacidades intelectuais e sociais mais sensíveis, voltadas apenas para si (como bem expressam as selfies postadas a cada minuto nas redes).

Ao tempo que são pessoas com traços egoístas cada dia mais intensos, são também pessoas inseguras, superficiais, distantes dos interesses coletivos e da realidade social que lhe cerca, com muita dificuldade de compreender que estão sendo controladas, exploradas e oprimidas. Na tese que defendi no meu doutoramento, trago essa discussão a partir do conceito de “captura da subjetividade” discutido pelo Professor e sociólogo Giovanni Alves, que nos mostra como a lógica capitalista em curso nos conduz a um modelo de vida cada diz mais desumanizador.

Aponto ainda no meu estudo, que temos o desafio de compreender melhor a dinâmica das redes sociais e aponto que, além de todas estas questões que o documentário apresenta, as tecnologias digitais são também instrumentos culturais que estão em disputa, tanto pelos que querem continuar a manipular e controlar a sociedade, como pelos que querem se contrapor a esse controle, denunciar estes conflitos e democratizar a informação. 

Nesse sentido, ressalto na tese que as redes sociais também exercem importante papel na quebra da hegemonia da grande mídia, sendo o lugar de contraponto de ideias, de abertura de diálogos, de amplas articulações e elevado potencial de disseminação de informações que podem ser utilizadas para contestar e expor os interesses da hegemonia política, econômica, religiosa e cultural.

Na tese que defendi em 31 de agosto deste ano, trago todas essas relações para a educação e faço um alerta de como a expansão desses valores via mediações tecnológicas e propostas curriculares que trazem, em seus conteúdos, padrões de comportamentos que vão na direção da manutenção da lógica manipulatória que vemos nas redes sociais.

Nessas relações que estabeleço entre estes elementos da cultura digital e a educação, dou destaque ao poder do capital em controlar, moldar e definir a realidade, inclusive na escola, e apresento como isso acontece.

Deixo aqui um convite para que assistam “O Dilema das Redes” e continuem acompanhando nossos textos, pois, nas próximas publicações nós iremos tratar um pouco mais desse instigante e importante tema!

Até mais!



* Doutora em Educação e Professora da UNEB - Campus VII.