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Diversos e Livres

Por Ivânia Freitas*

Querido amigo, olha que loucura a minha! Nesses dias “comuns” em que copiamos e colocamos frases prontas e que figurinhas (engraçadinhas) substituem palavras necessárias, eu invento de lhe escrever uma carta que nem passará pelo papel, nem demorará sequer um minuto para enviá-la a ti. Acho que senti saudade do tempo em que a nossa ansiedade era por abrir o envelope e ver o que havia de “novo”. Contudo, como disse Maiakóvski, “nada de novo há no rugir das tempestades”.

Embora estejamos enfrentando tempos mais duros do que previmos e, certamente, meu querido, “não estamos alegres e há muitas razões para ficarmos tristes”. Na velocidade que desestabiliza o rumo das coisas, é espantoso que já tenha se passado mais de um ano desde que nos vimos pela última vez. As “facilidades” comunicativas das redes digitais acabam nos dando uma falsa sensação de estarmos pertos uns dos outros, mas, só mesmo uma pandemia como a que vivemos, que nos restringiu a possibilidade de ir e vir, e nos colocou uma barreira impedindo de nos tocarmos, de acolher no afago de um abraço a quem tanto amamos, é que nos fez perceber que estarmos conectados apenas pelas redes não é suficiente. Precisamos de mais.

Quando comemorávamos a passagem de ano em 31 de dezembro de 2019, jamais poderíamos imaginar que 2020 seria único em nossas vidas e o quanto ele marcaria a humanidade em cada canto desse planeta imenso! Se, na literatura de Huxley, 2020 seria o futuro, o prenúncio pandêmico me parece ser um grande alerta do que somos e podemos vir a ser! Lembro-me que quando a Covid-19 se anunciava na China e seguia impiedosa pelos países europeus, nós, brasileiros, víamos as notícias pelos jornais, na internet e TV, e suspirávamos com pesar e espanto, lamentando os números de mortes que cresciam com velocidade inesperada. Contudo, meu amigo, nenhum de nós considerou a possibilidade real (e óbvia) de que aquele monstro que tirava vidas tão rapidamente, poderia chegar aqui e levar tantos de nós.

No espanto inicial da quarentena que achávamos ser provisória e rápida, fomos desacelerados de vez e entramos em uma espécie de estado de choque coletivo onde nos trancafiamos em nossas casas, quase em pânico pelo medo do desconhecido e invisível vírus que poderia nos matar em pouco tempo. Do dia para a noite, a maioria de nós viu o quanto a nossa “super” força e inteligência, por maiores que sejam, não mudam o fato de que, diante das manifestações do universo, aquelas para as quais não temos explicação ou controle, somos absolutamente insignificantes. À medida em que os dias passavam, vimos que o receio de perder a vida não era o único elemento a nos confrontar nesse inusitado momento pandêmico.

Os ricos buscavam no dinheiro a confiança de se manterem vivos, se isolaram em suas vidas de luxo e muitos chegaram a se espantar com o fato de que suas cifras não os tornavam imunes. Outra parte da sociedade pôde ficar em suas casas, elas não eram santuários do dinheiro, mas eram seus refúgios temporários mais seguros. No entanto, a maioria, os pobres e os desvalidos de tudo, ficaram entre a cruz e a espada, se ficassem em casa (para quem tinha casa) poderiam se distanciar da doença, mas a fome e os dissabores de uma vida disputada pão a pão, todos os dias eram uma ameaça ainda mais real. Quem os mataria primeiro, o vírus ou a pobreza? A única coisa comum entre as camadas sociais tão desiguais era o fato de que mesmo os que clamavam por descanso, os que sempre se diziam insatisfeitos por não terem tempo para estarem com seus familiares, de ficarem mais em casa, se chocaram quando se confrontaram com o cotidiano da vida como ela é.

A sensação que eu tive, observando vários relatos que explodiam nas lotadas redes sociais digitais, é que algo estava muito errado, além da conta, na forma como estamos vivendo. Se somos “forçados” a conviver com as nossas escolhas, com os nossos mais íntimos; quando viver sem os filtros das fotos, sem a máscara que colocamos para ser outros fora de nossa casa ou nas redes sociais; quando a verdade de quem de fato somos, nos causa desconfortos, deprime, constrange, violenta e nos choca, há mesmo algo fora do lugar nesse modo de viver. No emaranhado de coisas que essa pandemia nos trouxe, eu comecei a achar que ela não era de todo, ruim, que em meio às perdas e tensões, ao menos tínhamos a chance de compreender por que estamos passando por isso e o que se faz necessário romper, para que possamos viver com dignidade desse ponto da história em diante.

Os dias se passaram e estamos em overdose de ausência de convívio social presencial. Mas, sinto que estamos em um momento no qual estão sendo abertas as caixas da nossa alma e elas vão colocando para fora tudo o que somos de melhor e de pior como sociedade. As mortes que os gráficos nos apresentavam diariamente e nos faziam orar tomados pelo espanto e medo, passaram a ser ignoradas e as mais de 100 mil vidas perdidas, viraram uma estatística sombria, exceto para aqueles que passaram pela dor cortante de perder a quem se ama. Pois é, meu amigo, 2020 nos colocou de frente com essa inevitável verdade, a morte chega para todos, seja pela pandemia, seja por outras vias, ela sempre está à espreita.

Espantosamente, com tudo o que temos vivido e em meio a tantas incertezas, a morte, que insiste em nos dizer que temos uma breve passagem nossa pela Terra, parece ser a única certeza que 2020 quer acentuar. Ela, como uma canção insistente nos grita que “chegar e partir, são só dois lados da mesma viagem” e, ao tempo que nos provoca pavor, dor e medo, é ela, essa assombrosa presença, que nos convoca a viver com sabedoria o tempo que nos é oferecido para viver. É ela que nos diz que estar junto com quem amamos é um privilégio, cada momento é, de fato, único. Se podes abraçar, abrace; se podes estender a mão, estenda; se podes ser solidário, seja; se podes amar, ame sem limites; se podes seguir adiante, não pare, mas não corra ao ponto de perder o ar. Se podes parar, aproveite, descanse, reflita, reveja percurso e escolha qual o melhor caminho.

A morte é uma faca afiada apontada para nosso coração. Entretanto, talvez ela seja também, régua e compasso para traçar o presente, que não tem esse nome por acaso. O tempo presente é um “presente” que todos os dias nos é dado, talvez, para ver o que somos capazes de fazer com ele! A morte, fatídica e assustadora certeza, é o final de um ponto que existe para nos lembrar que ainda temos tempo e precisamos pensar melhor sobre como o usamos.

Agora, enquanto a pandemia do coronavírus paira sobre nossas cabeças, estamos com limites que estão para além de nossas escolhas. Diante de não poder fazer tudo que até março desse ano podíamos fazer com tranquilidade, mas que não o fizemos por não ter tempo ou por privilegiar outras coisas (que achávamos serem mais importantes) é que estamos aprendendo o que nos faz bem, de verdade! O quanto que um abraço pode confortar nossos dias, o quanto uma boa companhia nos alivia a alma e o quanto estar com as pessoas queridas dá sentido à vida. Se não lhe posso fazer uma visita, para dar-te o abraço desejado e fazermos essas reflexões filosóficas tão imprescindíveis para a vida, que essa carta chegue até você para dizer que estamos juntos nessa travessia e, por mais que tudo pareça duro demais agora, passaremos de mãos dadas com a esperança de que o melhor está por vir! E assim é.



* Doutora em Educação e Professora da UNEB - Campus VII.