Imagem/ Brasil de Fato Paraná

Diversos e Livres

Por Ivânia Freitas*

“Responda depressa quem se acha esperto

Quem sabe de tudo que é certo na vida

Porque que a cara feroz da mentira

Nos pode trazer tanta felicidade

Porque que na hora da grande verdade

Às vezes o povo se esconde se esquece”

O trecho acima é da música de Sá e Guarabira, lançada ainda na década de 1985. Embora à época as redes sociais não existissem e não se falasse em fake news, a canção já nos fazia pensar sobre as mentiras e verdades que circulam em nosso cotidiano.

Como dizem os versos, às vezes a mentira pode ser usada para trazer algum tipo de felicidade, como acontece, por exemplo, quando usamos um editor de imagens para deixar a aparência da gente mais próxima do que consideramos ideal. Esse recurso ganhou popularidade por conta das redes sociais, onde todos querem passar uma ideia de felicidade, de beleza, de bem-estar, que nem sempre é real, mas que, de algum modo, acaba lhe fazendo mais feliz (mesmo que por alguns momentos).

Sejam alterações superficiais ou mais exageradas, o fato é que há ali uma não verdade sobre quem de fato somos e vivemos. Ou seja, nem tudo que se vê nas redes é o que é. O fato é que as redes sociais ampliaram a divulgação de mentiras que acabam se tornando comuns e aceitáveis no dia-a-dia, nos fazendo duvidar de quase tudo ou acreditar que não há uma verdade e que agora tudo depende de ponto de vista.

Esse é um dos grandes dilemas das redes, elas nos trazem mentiras e verdades em uma quantidade cada vez maior e mais veloz, nos impedindo de distinguir com clareza o que procede e o que não procede.

Mentirinhas que forjamos quando acrescentamos ou tiramos coisas de nossas imagens em busca da beleza ideal certamente não trazem prejuízos a ninguém. Mas há outros níveis de mentira que atrapalham a nossa vida, inclusive em questões verdadeiramente sérias que afetam toda a sociedade.

Nesse período eleitoral, muitas notícias falsas são postadas nas redes sociais e rapidamente compartilhadas. São centenas de informações que alcançam milhares de pessoas em questão de minutos, sendo que, a maior parte delas não se baseia em fatos concretos, apenas em especulações e acusações. Não é por acaso que há tanta gente sendo processada por difamação e calúnia, respondendo a processos longos na justiça ou pagando multas de altas cifras.

Portanto, as mentiras espalhadas nas redes sociais acabam trazendo transtornos para quem postou ou replicou a mensagem e, mais ainda, para quem foi vítima da notícia maldosa, que não consegue fazer a verdade dos fatos chegar a todas as pessoas as quais a mentira chegou. Dessa forma, histórias de vida são destruídas, pessoas são julgadas e condenadas socialmente, sem que se tenha direito de expor o outro lado da moeda.

Sabemos que as mentiras e as manipulações de fatos não são práticas que surgem com as redes sociais da era digital, mas que foram amplificadas por elas, tendo em vista seu poder de alcance e velocidade. De tão comuns, as mentiras acabam virando rotina e têm fortes efeitos sobre a democracia, a política, a ciência e a educação, causando um caos social difícil de conter.

No caso do processo eleitoral, elas impedem que a população tenha acesso às informações que poderiam ajudar na escolha dos representantes políticos que ocuparão importantes cargos públicos. Isso tem sido drástico para a democracia, uma vez que as fake news causam uma guerra informacional que tira do foco as propostas políticas dos candidatos e dão centralidade às fofocas sobre a vida pessoal, ofensas e outras acusações que atentam sobre a liberdade de escolha dos cidadãos.

As mentiras, geralmente organizadas por uma rede de pessoas ou robôs programados com este fim, tanto rebaixam o debate político, como deixam as pessoas ainda mais manipuláveis e impedidas de analisarem os perfis de seus candidatos, alimentando práticas coercitivas, clientelistas e de abandono dos princípios de civilidade.

Quando estes princípios são rompidos e não há mais compromisso com a verdade, a liberdade de expressão passa a ser ameaçada, uma vez que nem sempre se há clareza de que o direito de se expressar livremente não significa poder dizer tudo que se pensa. Ao se dizer o que se pensa, pode-se ofender a dignidade ou invadir a privacidade de outra pessoa e o que seria livre expressão, pode virar uma ação judicial. Desse modo, é fundamental que recuperemos os princípios de civilidade. E eles incluem a ética e a responsabilidade consigo e com o outro.

Ter acesso à informação e poder comunicar-se são princípios básicos da democracia. Uma vez que estes processos se corrompem com a divulgação de mentiras, a democracia perde força, fortalecendo o jogo do controle e da manipulação. Vejamos que as propostas de censura e controle sobre o uso da internet ocorrem sob argumentos que destacam, sobretudo, as ações criminosas cometidas via redes sociais e as fake news, como vimos, têm avançado amplamente nessa direção, especialmente quando elas dizem respeito ao âmbito do interesse público.

A confusão informacional gerada pelas práticas de difusão de mentiras ou pela manipulação dos fatos, tem alcançado outros âmbitos da vida, a exemplo da saúde pública, como tem ocorrido no período de pandemia. As notícias falsas veiculadas, inclusive, pelo governo federal, têm dificultado ações de enfrentamento ao COVID-19, sobretudo, quanto aos meios de contaminação, o uso de medicamentos e até mesmo da relevância da vacinação. Embora essas afirmativas não tenham base científica comprovada, elas desequilibram a população e vão criando guetos ideológicos em torno de informações que são de importância vital.

No jogo de poder que envolve as fake news, milhares de pessoas vão se afastando do parâmetro da ciência e da história e validando opiniões que tem por base, apenas, as convicções pessoais. Embora se dê pouca relevância a este aspecto, ele tem se tornado um traço cultural da sociedade das redes digitais, onde se abre uma grande contradição: quando a informação e comunicação estão acessíveis como jamais estiveram, ampliou-se a ignorância em torno da compreensão da realidade, tal qual ela é.

Na Educação, como processo de formação dos sujeitos, os efeitos podem ser vistos fora e dentro das escolas. O que se vê nas redes sociais, são práticas cada dia mais tendenciosas de descaso com os processos históricos que devem ser o principal parâmetro para compreender a realidade social, abrindo uma grande brecha para que as gerações mais novas e futuras não se apropriem de um conhecimento consistente da história, uma vez que tudo pode ser contestado (anunciado como mentira), a partir de narrativas ilusórias fundadas em perspectivas ideológicas do poder dominante (os mais ricos), que desejam impedir que a realidade seja compreendida, mantendo-se, portanto, inalterada. 

Nessa linha, ouvimos discursos absurdos como os de que “não houve escravidão no Brasil”, de que as “desigualdades de gênero são uma invenção da ideologia de esquerda" ou mesmo, que “a terra não é redonda”. A única forma de combater essas mentiras é dando acesso ao conhecimento histórico que já temos acumulado.

Aí entra o papel das escolas que tem como tarefa principal promover o acesso ao saber mais elaborado para, a partir dele, ser possível uma maior compreensão da realidade social e sua transformação. A forma que as escolas têm de fazer isso é através do seu currículo e por isso, ele precisa ser elaborado e fortalecido tendo a verdade histórica como parâmetro e horizonte para aperfeiçoar a democracia.

Como diz a canção:

“Às vezes é sua inimiga a verdade

Às vezes é sua aliada a mentira

Aquilo que a vida nos dá e nos tira

Não anda de braços com a sinceridade

Por onde será que é mais curto o caminho

Qual deles mais sobe

Qual deles mais desce

Verdade

Esconde esconde

Jogo de esconde esconde

Tudo se esconderá

Mentira

Esconde esconde”.



* Doutora em Educação e Professora da UNEB - Campus VII.