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Imagem/Fabio Campos/Época |
Por Profa. Dra. Ivânia Freitas e Prof. Me. Marcos Uchôa (doutorando em Educação)*
Na prosa
dessa semana, compartilho com vocês algumas reflexões que fiz com o Professor
Me. Marcos Uchôa a partir de um diálogo com o artigo publicado na semana
passada pelo Secretário de Educação do Petrolina, o qual entendemos trazer
relevantes questões de interesse público.
O artigo
“Educação na pandemia: a condenação do futuro” escrito pelo Secretário de
Educação do Município de Petrolina-PE, Professor Plínio Amorim, publicado no
Blog do Carlos Britto, em 26 de janeiro de 2021, chamou-nos a atenção,
inicialmente, por ir de encontro, em alguns aspectos, às informações divulgadas
pelos órgãos sanitários quanto ao avanço da COVID-19 desde os últimos dias do
ano passado. A chamada segunda onda mundial do vírus tem assustado as
autoridades de saúde por sua forma de contágio ser maior. Por essa razão, países que já tinham
controlado suas taxas de contaminação e haviam reaberto as escolas seguindo os
protocolos das organizações sanitárias, voltaram a fechá-las diante do
crescimento do número de infectados e de mortos.
É de
estranhar que no grave cenário do Brasil, com mais de 220 mil vidas perdidas,
com cerca de 1.386 óbitos diários, o Secretário Municipal defenda o retorno
(mesmo que gradativo) das aulas presenciais, sob o argumento do uso de
protocolos sanitários. O artigo nos provoca inúmeras reflexões, que vão desde a
ausência de visão de contexto (tanto da realidade concreta das escolas, sua
dinâmica pedagógica e de seus sujeitos), a argumentações que caminham na
direção de responsabilizar a educação e os professores pela “condenação do
futuro” dos estudantes. Por estas razões, estabelecemos um diálogo com os
argumentos do artigo do Secretário para explicitar as bases do “dito e não
dito” em tal discurso.
Historicamente,
o discurso hegemônico busca desviar a atenção da sociedade sobre as
desigualdades sociais como sendo fruto de um modo de sociabilidade que favorece
que uma pequena parcela da sociedade mundial acumule grandes fortunas, enquanto
milhões de pessoas passam fome e outros milhões vivem com o básico. É no
sentido de desviar o olhar sobre esse quadro desigual naturalizado, que o
discurso das classes dominantes não se cansa de afirmar chavões de que a
educação tem o “poder” de resolver as “injustiças sociais”, como se tais
injustiças fossem geradas ou resolvidas dentro da escola.
Sabemos
da importância da Educação para o desenvolvimento pleno dos sujeitos e isso
inclui a elevação de suas capacidades econômicas, uma vez que favorece acessar
empregos mais qualificados e melhor remunerados. Contudo, a educação só atua na
diminuição das injustiças e no combate às desigualdades, se junto às suas
políticas são agregadas outras políticas no âmbito da geração de empregos e
distribuição de renda, saúde, assistência social, políticas de acesso à
cultura, ao lazer, às práticas desportivas, aos meios de informação e comunicação,
apenas como exemplos.
Em um
país de severas desigualdades como o Brasil, chegar à escola e nela permanecer
já é um desafio. Os que nela chegam e ficam, enfrentam precárias condições
estruturais que afetam diretamente suas aprendizagens e, mesmo quando em alguns
casos, as escolas sejam dotadas de um certa infraestrutura, os estudantes
enfrentam os limites do ensino padronizado, das práticas pedagógicas e de
gestão que não os enxergam nas suas situações de desigualdades e diferenças,
além de professores desanimados com o alto controle de suas práticas cada dia
menos criativas e felizes, diante do modelo empresarial imposto às escolas, no
qual a atual Base Nacional Comum Curricular é carro chefe. Tudo em nome de uma
visão de qualidade de educação que pouco se importa com as injustiças sociais,
mas que se volta exclusivamente para produzir indicadores que nada ou muito
pouco dizem sobre o que, de verdade, interessa à educação.
Por essa
razão, é “mais comum na rede pública encontrar alunos com atraso no
desenvolvimento das competências da sua idade e ano de escolaridade”. De fato,
como disse um “velho sábio”, numa sociedade desigual e dividida em classes,
marcada pelas injustiças sociais, a educação (ou seja, a escola) carrega em seu
formato, processos e resultados, os traços dessa sociedade. Portanto, se
queremos uma sociedade sem injustiças, teremos que questionar e mudar os
elementos dessa sociedade que dão origem às injustiças e certamente, essa
origem não está na escola em si.
O início
da Pandemia da Covid-19 desvelou ainda mais uma realidade cruel na qual as
escolas públicas brasileiras estão imersas, as das precárias condições
materiais e objetivas de funcionamento, de problemas relacionados à formação
docente, além de outros tantos que desafiam a educação. Contudo, mesmo diante
de todos os desafios postos não é possível afirmar que “pouca coisa de
produtivo tem acontecido”.
Os
professores, especialmente, em todos os cantos do país, têm se desdobrado para
adquirir os próprios equipamentos tecnológicos, fazer cursos on-line, vestir-se
de personagens para tornar as aulas mais atraentes, ligar diretamente para os
estudantes. Há pesquisas que apontam o professor como o único sujeito, muitas
vezes, que ainda mantém e faz questão de manter contato quase diário com os
estudantes. A racionalidade que sustenta o discurso da pouca produtividade é a
lógica empresarial, da eficiência e eficácia que põe as escolas sob uma forma
de gerencialismo, que fere os próprios princípios de acesso e permanência na
escola pública.
Bares,
restaurantes e shoppings que voltaram a funcionar nesse período, o fazem por
diversas razões, sobretudo, via apelo do discurso do mercado de que a economia
vai quebrar se estes segmentos se mantiverem parados até o fim da ameaça
pandêmica. Todos sabemos que esse discurso é apenas uma das muitas cortinas de
fumaça criada pelo governo federal, que se aproveita dos efeitos que a Pandemia
inevitavelmente deixa em todos os setores (mundo afora), para tirar do foco a
ausência de uma política econômica capaz de manter empregos e empresas e a
total incapacidade do Ministério da Saúde desenvolver um plano de ação de
combate à Pandemia, como têm feito outros países (nos dois setores em questão).
Mas, a
comparação do Secretário de Educação, “bares e restaurantes funcionam” e
escolas com aulas presenciais não funcionam é, no mínimo, trágica! Primeiro,
porque como educador, ele deve saber o que é a dinâmica de uma escola, como as
crianças, adolescentes e jovens se relacionam no dia a dia; deve saber o que é
o recreio e sabe como são as escolas: o tamanho das salas, as condições de
banheiros, de cozinha, de “refeitório”.
Ele deve saber também, que a comida nas escolas é feita por gente, os
professores e professoras (a maioria de mulheres que engravidam) são gente, os
vigilantes da escola também são gente. Todos, incluindo os estudantes, vêm e
vão para suas casas, entram em transportes, lidam com outras pessoas (incluindo
idosas) e, voltam para a escola, carregando com elas, a possibilidade de
morrerem ou levarem a morte para alguém. E isso não é exagero nosso, visto que
a ciência ainda não tem todos os elementos para compreender os limites e
possibilidades de alcance desse vírus, visto que ele tem apresentado mutações.
A
afirmação do Secretário nos chama atenção ainda, porque ele deve saber que
bares e restaurantes se frequenta por opção, escola não. Os bares e
restaurantes funcionam porque o seu dono está focado na renda e não são
responsáveis pelas vidas que passam por lá e o que vai acontecer com elas (já
que vão por livre vontade). Mas, como sinalizamos anteriormente, escola não é
empresa, ela não tem lucros a gerar, ela tem pessoas para cuidar, educar e
vidas a preservar.
O recente
relatório da UNESCO ressalta a importância da volta das escolas, entendendo-as
como espaços insubstituíveis para o processo formativo das crianças,
adolescentes e jovens. Para isso, os professores e professoras devem estar na
linha de frente do plano de imunização. Mas, no Brasil, o governo federal não
deu prioridade aos profissionais da educação na primeira fase de vacinação. Ou
seja, o argumento de voltar às aulas presenciais trazidos pela UNESCO vale para
países que valorizam a educação e respeitam os professores, o que não tem sido
o caso do Brasil. Da mesma forma, o Plano para imunização do município de
Petrolina só prevê a categoria dos trabalhadores da educação em sua terceira
fase de vacinação. Sob qual lógica seria racional reiniciar as atividades
letivas presenciais, mesmo que progressivamente, e colocar os profissionais da
educação em uma fila na qual não se sabe quando chegará a terceira fase? E os
estudantes e funcionários seriam vacinados quando? Suas vidas não importam?
O apelo à
razão de que “não podemos, agora, paralisar o futuro”, não é só injusto, é
também perverso. Primeiro, porque põe sob a responsabilidade da escola e de
seus profissionais o suposto “futuro”, que não está ameaçado pela escola, pois
a Pandemia não é um fator sob o controle da escola ou de seus profissionais,
mas das autoridades governamentais que devem agir na produção de pesquisas,
vacinas, medidas de isolamento social e com políticas de saúde e econômicas que
garantam o elemento indispensável para viver o suposto “futuro”, estar vivo!
Segundo,
porque ignora as reais condições objetivas de funcionamento das escolas
públicas, especialmente as escolas do campo, que vivem descasos históricos com
as questões básicas, sobretudo, de ordem estrutural. Terceiro, porque desresponsabiliza
o poder público de agir no enfrentamento das desigualdades sociais que
possibilitam a ampliação da riqueza de poucos e o aumento da pobreza de muitos,
mesmo durante a Pandemia, o que não só “paralisa o futuro”, mas o nega objetiva
e subjetivamente aos filhos e filhas da classe trabalhadora.
Daí, vale
lembrar que a sociedade vive, na Pandemia, o choque do impedimento das aulas
presenciais e isso de algum modo, deu visibilidade à importância da escola.
Contudo, a educação pública brasileira não foi parada pela Pandemia, a escola
sim. A Educação vem sendo paralisada com medidas severas, especialmente, depois
que a Emenda Constitucional 95/2016 congelou os recursos para os próximos 20
anos. Soma-se a isso, o significado real da perda dos royalties do pré-sal, que
o Plano Nacional de Educação previu como fundamental para a garantia da
qualidade da educação. Além do mais, a sociedade precisa saber que os últimos
cinco anos acentuaram um processo de cortes de várias políticas na educação
básica e superior, que permitiriam que o “futuro” das gerações atuais fosse
melhor do que o nosso. Essa é a verdadeira “condenação do futuro”, um país em
que o Estado não se responsabiliza nem com a educação e nem com a vida de seu
povo!
Vale
dizer também que, se não se pode “paralisar o futuro”, igualmente não se pode
reduzi-lo a formatos precários de educação e que ignoram os contextos concretos
da vida e reduz tudo a números, estatísticas, indicadores. Nesse sentido, é bom
destacar que voltar às aulas presenciais só faz sentido se a escola puder ser a
escola de fato: lugar do encontro, da acolhida, da vida pulsante das crianças e
adolescentes passeando pelos corredores, construindo trabalhos em grupo,
aprendendo a serem pessoas melhores (no presente e para o “futuro”); que ela
possa ser o lugar das relações de convivência que se desdobram no afeto
demonstrado pelos abraços nos professores/as, pela partilha do lanche com os
colegas e em tantas outras situações.
Compreendemos
que “chegou o momento de a humanidade provar sua inteligência e assumir
compromissos racionais com a segurança e a evolução da sociedade”, de fato.
Para isso, necessitamos em um primeiro plano, firmar o compromisso de não negar
a ciência e seus alertas sobre o risco que corremos e sobre a saída real que
temos, a vacina! Se ainda não conseguimos vencer essa doença, isso se deve a um
visível retrocesso na inteligência, fruto do negacionismo, do fundamentalismo
religioso e da conveniência política dos que preferem se manter em seus postos
de poder e paralisam sua inteligência nos discursos repetitivos pouco sensíveis
com os dilemas reais que a população enfrenta.
Um
segundo compromisso (de bom uso dessa inteligência), seria o de nível
planetário, o de ter a vida como o maior bem e nada deveria vir como
prioridade, nem bares, nem restaurantes, nem escolas funcionando.
Um
terceiro compromisso está a nível nacional, é urgente destituir o ícone do
movimento antivacina do país, o presidente da república! Ele tem sido a marca
do atraso, não apenas da volta às aulas presenciais, mas da democracia e isso
paralisa o futuro de muitas gerações!
E, um quarto compromisso, seria combater com veemência o discurso da educação na lógica que fortalece o capital e a afasta da sua principal função - educar pessoas desenvolvendo suas capacidades mais elevadas para que possam agir na mudança desse modelo social que nos impede de sonhar com o futuro.
Por fim, faz-se necessário compreender que o artigo do Secretário Municipal de Educação de Petrolina, apesar de trazer em alguns momentos frases de efeito, aponta para um discurso no qual se manifesta claramente, a responsabilização da escola e de seus sujeitos por questões que estão no âmbito da capacidade (e competência) do Estado resolver, pois é dele a tarefa do cuidado com o bem público, dentre eles, a vida de cada cidadão. Talvez, por isso, falte no artigo do Secretário palavras como "governo", "estado", "município" ou simplesmente "nós", e assim "o dito e o não dito" se aproximam mais dos discursos economistas que, evitando trazer pautas estruturantes para o diálogo, reiteram a lógica de culpabilização das escolas e seus profissionais, num claro manifesto de isenção dos que têm a responsabilidade pelos dilemas vividos na educação pública, bem como, pelos efeitos cruéis da Pandemia no presente de nossas crianças e na abreviação de seu futuro. A proposição de voltar às aulas nas atuais condições e com esses argumentos trazidos no artigo pelo Secretário reflete, sem dúvida, uma "intransferível marca negativa" do compromisso das autoridades públicas neste momento pandêmico, com essa e com as próximas gerações.
* Rede Autonomia e Diversidade na Educação Pública - REDAP
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