Imagem/Remanso News

Por Marcos Paulo*

Na terça-feira, 02/02, o programa “Bom dia comunidade!”, da rádio comunitária Zabelê FM, recebeu o procurador do Estado da Bahia, Dr. Hugo Régis, para uma entrevista sobre a aprovação do famigerado projeto de lei Nº 471, o primeiro do governo Marcos Palmeira. Essa lei dispõe sobre a organização administrativa do poder executivo municipal. Acontece que o artigo Nº 33 do projeto revoga alguns artigos, parágrafos e incisos da lei Nº 99 de 2002, abolindo garantias e benefícios trabalhistas do servidor público, a exemplo do quinquênio e da licença prêmio.

O objetivo deste texto é comentar algumas falas de Hugo Régis durante a entrevista. Mas antes, é preciso fazer duas considerações: 1- Hugo Régis garante que não foi o idealizador do projeto, mas contribuiu diretamente com sua elaboração, a despeito de não ter nenhum cargo na prefeitura. Fez isso como cidadão que deseja uma cidade melhor para todos, convicto de que a “gestão” Marcos Palmeira representa esse anelo. 2- Duas dúvidas ficaram no ar, pelo menos para mim: o entrevistado estava falando em nome da prefeitura e do prefeito? Sua opinião é a mesma do atual “gestor” municipal?

Feitas essas duas considerações, vamos à entrevista. Apesar dos vários floreios retóricos, e muitas vezes nada objetivos, ao responder as perguntas, deu para compreender perfeitamente o conteúdo da mensagem transmitida por Hugo Régis, bem como sua visão sobre “gestão” pública e servidor público. O que importa aqui é identificar o dito e o não dito do discurso de Hugo Régis e seus efeitos práticos. Asseguro que isso só será possível se partirmos de uma premissa básica: o procurador mostra ser um neoliberal que posa de progressista. É mais um representante daquilo que a filósofa estadunidense Nancy Fraser chamou de “neoliberalismo progressista”.

Seus representantes adoram falar de mérito, desempenho, metas, modernização, governança, responsabilidade fiscal, gestão ambiental, mas evitam dizer qualquer coisa sobre as estruturas que promovem exclusão social e econômica, bloqueando a promoção da igualdade e da justiça social, assim como a implementação de políticas redistributivas e de reconhecimento inclusivo. Para eles, o sucesso e a garantia de uma vida bem-sucedida dependem apenas do esforço pessoal, que cada um de nós aceita se submeter, cientes de que todo sacrifício será seguramente recompensado no futuro; para isso, basta se qualificar, atingir as metas e ajudar a melhorar os índices de avaliação e qualificação dos serviços públicos.

Hugo Régis começa sua fala afirmando que um plano de carreira para o servidor público, justo e moderno, utiliza os critérios da produtividade e da eficiência como formas de recompensar, pelo mérito, os servidores que cumprem as metas estabelecidas pela administração pública. Para ele, é uma excrescência um servidor público improdutivo, que utiliza o serviço público como “encosto”, ser gratificado, após cinco anos, com um ajuste salarial de 5% (quinquênio) e com uma licença de três meses (licença prêmio) para ficar debaixo da árvore chupando manga na fazenda. “Os planos de cargos e salários efetivamente vão valorizar aqueles que produzem, têm um desempenho, que se comprometem com o serviço público”, afirma o procurador. Aqui, penso que Hugo Régis esteja falando do compromisso da atual “gestão” municipal com a implementação desse novo modelo de plano de cargos e salários. Mesmo porque, segundo o entrevistado, o atual prefeito só poderá honrar o compromisso assumido com a APLB se adotar esse modelo de plano que valoriza e recompensa o servidor pelo desempenho e não pelo tempo de serviço.

Esta é a imagem do servidor público que o discurso neoliberal tenta passar: um sujeito acomodado, cujos “privilégios” são assegurados com recursos provenientes dos impostos pagos com o suor do cidadão. Em outras palavras, um usurpador sanguessuga do erário público. Ora, para esses servidores que não cumprem com suas obrigações e deveres, existem os processos administrativos, que, a depender do caso, podem resultar na exoneração do cargo de ocupam. Se o servidor é improdutivo, que se abra um processo administrativo contra ele e ponto.

Porém, o que o sr. Hugo Régis quer lá no fundo são duas coisas: acabar com a estabilidade no serviço público e generalizar a concorrência, princípio que organiza o mercado, no serviço público, pois na sua cabeça a prefeitura, as escolas, as repartições públicas, são empresas administradas por gestores. Ele pode até negar esse desejo, talvez com razão; no entanto, esse é um dos efeitos que seu discurso em defesa desse projeto de lei, alinhado ao pensamento neoliberal, provoca.

Outro ponto: o neoliberalismo tenta o tempo todo desacreditar a ação política daqueles que se opõem a seus princípios e agendas. Para isso, estabelece uma legislação que fragiliza a organização dos trabalhadores em sindicatos, ou cria discórdias entre eles. Por exemplo, em vários momentos de sua entrevista, Hugo Régis lembra ao ouvinte que a revogação dessas garantias não irá atingir os atuais servidores, somente os futuros concursados. Ora, a luta política envolve também o interesse coletivo da classe e não apenas interesses individuais; dessa forma, não adianta dizer que os atuais servidores não serão atingidos porque ingressaram no serviço público mediante concurso anterior à vigência da atual legislação; se a luta é coletiva, haverá preocupação sim com a situação dos futuros servidores. Em outros momentos de sua fala, Hugo Régis basicamente diz que quem se opõe à retirada desses direitos o faz porque é motivado por paixões e emoções.

Aqui, Hugo Régis se vale da arrogância implícita: enquanto ele supostamente fala de maneira equilibrada e racional, a oposição é desequilibrada e passional, inviabilizando o debate civilizado. Pior: tomada pela paixão e emoção, a oposição somente irá perceber a necessidade dessa mudança lá no futuro. O drama de todo neoliberal consiste em tentar justificar aos servidores públicos que a revogação de vários de seus benefícios trabalhistas é algo bom e positivo para eles. Sem conseguir fazê-lo, apela a essa ideia segundo a qual quem pensa fora da cartilha neoliberal acaba agindo com o fígado.

Muitos ouvintes questionaram e com razão o fato de que existem muitas categorias de servidores públicos que nem plano de carreira e salários possuem. Perguntaram como seria estabelecido um plano para essas categorias baseado nos critérios de desempenho e cumprimento de metas. Por exemplo, nas escolas, além dos professores, há também o pessoal da cozinha, da limpeza e da vigilância. Pensar metas para os professores é fácil, mas como fixa-las para essas outras categorias de servidores públicos?

A entrevista de Hugo Régis vale a pena ser vista e ouvida. Para estabelecer o sentido e o significado de seu discurso, precisamos compreender que ele presentifica a visão de gestão pública instituída pela lógica concorrencial neoliberal. Ela esvazia a compreensão do que deve ser um funcionário público, um servidor a serviço do bem comum, pois potencializa nele a noção de que a sociedade é composta por indivíduos egoístas, que agem, fundamentalmente, motivados pelo interesse pessoal de ver suas vidas melhorarem pelo próprio mérito. Ademais, a fala do entrevistado apresenta uma falsa dicotomia: ou aumento da produção mediante o foco no desempenho individual, ou mantém a estabilidade e as gratificações por tempo de serviço, ameaçando a produtividade. É possível e desejável fazer tudo isso ao mesmo tempo: elevar a produção, premiar o servidor que cumpre as metas, garantir sua estabilidade e recompensá-lo pelo tempo dedicado ao serviço público.

Para assegurar à população serviços públicos de qualidade, a administração municipal precisa é criar as condições objetivas e subjetivas adequadas para que seus servidores trabalhem com a cabeça erguida e com orgulho. Melhores condições de vida e trabalho é o que os servidores públicos de Remanso desejam e reivindicam e não a retirada de seus direitos, a duras penas conquistados com muita luta e sangue. 


* Professor de História do município de Remanso.