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Diversos e Livres

Por Ivânia Freitas*

“Acho que, com remédios e outras coisas, eu tenho um pensamento que pode parecer muito ruim para as pessoas, desumano. Na minha opinião, existem muitas pessoas que fizeram muitas coisas erradas e estão aí pagando seus erros para sempre em prisões, que poderiam ajudar nesses casos aí, de pessoas para experimentos”.

Essa foi a fala da Xuxa em recente live da Assembleia Legislativa do Rio, sobre o direito dos animais. Ao tentar retratar-se das críticas geradas por sua declaração, Xuxa (preocupada pela repercussão ruim na sua carreira) admitiu ter errado: “quem sou eu para dizer que devem ficar ali ou morrer ali?”, disse ela em suas redes sociais na madrugada de sábado para domingo 27/28 de março. Ainda assim, a fala da Xuxa externou a sua clara posição sobre como o Estado deve tratar as pessoas nas prisões, sobretudo, aquelas com sentenças longas (obviamente, as mais pobres).

A fala da Xuxa, antes de qualquer coisa, é sem dúvidas uma posição de classe. Na lógica da Xuxa e da classe social que ela representa, se essas pessoas estão presas é porque cometeram “erros”, e suas vidas, obviamente, têm pouco valor. Então, que sejam cobaias em testes de vacinas e de “outras coisas”, afinal, seguindo a sua lógica, tais pessoas não têm serventia, são apenas “coisas” à espera da morte, enquanto cumprem suas sentenças. Disse ela: Essa é a minha opinião, já que vai ter que morrer na cadeia, que pelo menos sirva para ajudar em alguma coisa.

O que a Xuxa deixou escapar tem uma relação direta com o discurso bolsonarista de que “bandido bom é bandido morto”. Ambos expressam, de forma evidente, o que é um “cidadão de bem” para esta classe de privilegiados e as “boas intenções” do indivíduo desumanizado, moldado pelos valores do capitalismo ultraexplorador, e indiferente com o que e com quem não lhe interessa.

A Xuxa mostra desprezo pela vida humana, mas usa sua fala cruel para sustentar sua defesa pelos direitos dos animais. Os bolsonaristas, por sua vez, fazem a defesa de assassinato de pessoas “ruins”, a pretexto de garantir a vida dos “bons”. No fundo, eles tratam da mesma coisa: é preciso “limpar” a sociedade, tirar dela os que desestabilizam a vida boa (de alguns) para manter o equilíbrio ambiental e social (para outros). É preciso que os valores de alguns continuem a prevalecer sobre os demais, isso é fundamental para garantir a “ordem” desse tal “progresso” que pode ser tão bom para uns e tão danoso para outros. Mas, a vida ‘é assim mesmo’, “uns nascem pra sofrer enquanto o outro ri” (disse o velho Tim). O ruim deve ser, portanto, eliminado, tirado de cena. Quem está preso é ruim, quem está livre é bom. Quem o Estado mata é ruim. O Estado, que mata, é bom.

Bandido, crime, prisão e liberdade são conceitos que, certamente, podem variar de sentido e intensidade, a depender de quem julga e de quem é julgado, como revelou o STF, em recente pronunciamento sobre a suspeição do ex-juiz Sério Moro, no julgamento do ex-presidente Lula, preso por mais de 500 dias, sob acusações forjadas e, evidentemente, duvidosas. É possível observar que esses conceitos variam também em outras situações. Vejam o caso do assassinato da vereadora Marielle Franco que há três anos espera resposta, mesmo que evidências indiquem sinais de onde partiu a ordem para o crime. Ainda é possível ver esta “variação” nas liminares que insistem em suspender a quebra do sigilo bancário de um dos filhos do presidente da república, envolvido no escandaloso caso das “rachadinhas”.

Tanto um discurso quanto o outro, seja o da Xuxa (defendendo os animais e condenando ao estado de “coisas”, as pessoas nas prisões) ou o dos bolsonaristas, amantes do fascismo, são defesas de quem se encontra numa posição favorável. Os que olham a vida da torre de seu castelo e de lá planejam formas de “melhorar o mundo”, segundo os seus interesses individuais. São pessoas que conhecem quase nada da vida concreta e o pouco que conhecem é mera narrativa.

Como a Xuxa, há muitos que fazem discursos ambientalistas sem que se traga para o debate o problema central da concentração das riquezas. Eles não tratam da ação ambiciosa e gananciosa dos mais ricos e de como estes avançam impiedosamente sobre as terras, águas, floretas e populações inteiras, sem a menor preocupação com a vida presente ou a futura, tudo em nome do capital.

Fica de fora, em suas abordagens, a ação dos latifundiários do agronegócio com as queimadas e derrubadas de árvores a serviço da monocultura da soja, da cana ou da criação de bovinos para a exportação, que tem levado à agonia diversos biomas e expulsado as comunidades tradicionais de seus territórios de origem. Esses “ambientalistas”, não fazem referência aos empresários, inclusive artistas, que, com seus hotéis e resorts de luxo, invadem áreas de ampla biodiversidade para gerarem mais riqueza para si.

Elas também não associam às suas “defesas”, a pauta da ausência de um Estado que garanta direitos iguais a todos e todas, incluindo-se o direito a uma justiça imparcial, à celeridade nos processos de pessoas que esperam julgamentos justos, em condições precárias nas prisões, assim como, não pautam a necessidade de uma política carcerária humanitária. Essas pessoas não questionam o dever do Estado em assegurar uma polícia que não aja com a mesma face e farsa dos “bandidos” que combate; um Estado que tenha uma política de segurança pública como prioridade, ao invés de decretos que armam a população, individualizando o problema da segurança e incentivando a violência.

Elas também não discutem a necessidade de investimento na ciência para que as pesquisas aperfeiçoem seus resultados e tenham a vida e a ética como condições a serem preservadas em qualquer circunstância. Elas vivem de falas rasas, atuam no campo das comoções, com forte apelo social, mas não vão a fundo nas questões que colocam em xeque o modelo de sociedade, que naturalizou a exploração (das pessoas e dos recursos ambientais), como forma de “desenvolvimento”, assim como, fez da indiferença, do individualismo e da crueldade, valores sociais. Elas não fazem essa crítica porque foi esse modelo que as colocou na posição privilegiada de “julgar” e condenar os outros tão naturalmente.

A fala de Xuxa, como bem disse ela, mais de uma vez, é como, de fato, ela pensa, é sua opinião, e é a opinião de outros tantos, que na condição ímpar de olhar o mundo da janela de suas mansões, do lugar “intocável” do poder do dinheiro, resumem tudo à solução da eliminação do outro, dos que já são invisíveis e eliminados de muitas formas, nessa estrutura social tão desigual. Como Xuxa, há muitos e muitas que seguem a sua lógica.

Não é um detalhe o fato de que o repórter que a ouvia tenha concordado com a sua fala. Na sociedade de classes com interesses tão díspares, é assim, o pensamento dos que dominam invade as entranhas dos dominados de tal forma, que eles passam a defender os valores de seus algozes como sendo seus e fazem isso sem sequer perceber essa infeliz contradição.

Xuxa e o discurso dos bolsonaristas expõem como pensa a classe dominante e como ela propõe tratar as questões profundas da sociedade brasileira. É o pensamento característico do tal "cidadão de bem" e que tem alimentado a profunda desumanização pela qual vimos passando, e o que é pior, conta com adeptos silenciosos que, vez ou outra, num "ato falho" (!?), como este da Xuxa, trazem o horror da verdade da nossa sociedade para a cena.



* Doutora em Educação e Professora da UNEB - Campus VII.