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Imagem: Reprodução/Instagram |
Diversos e Livres
Por Ivânia Freitas*
“Acho que, com remédios e outras coisas, eu tenho um pensamento que pode parecer muito ruim para as
pessoas, desumano. Na minha opinião, existem muitas pessoas que fizeram muitas
coisas erradas e estão aí pagando seus erros para sempre em prisões, que poderiam
ajudar nesses casos aí, de pessoas para
experimentos”.
Essa foi
a fala da Xuxa em recente live da
Assembleia Legislativa do Rio, sobre o direito dos animais. Ao tentar
retratar-se das críticas geradas por sua declaração, Xuxa (preocupada pela
repercussão ruim na sua carreira) admitiu ter errado: “quem sou eu para dizer que devem ficar ali ou morrer ali?”, disse
ela em suas redes sociais na madrugada de sábado para domingo 27/28 de março.
Ainda assim, a fala da Xuxa externou a sua clara posição sobre como o Estado
deve tratar as pessoas nas prisões, sobretudo, aquelas com sentenças longas
(obviamente, as mais pobres).
A fala da
Xuxa, antes de qualquer coisa, é sem dúvidas uma posição de classe. Na lógica
da Xuxa e da classe social que ela representa, se essas pessoas estão presas é
porque cometeram “erros”, e suas vidas, obviamente, têm pouco valor. Então, que
sejam cobaias em testes de vacinas e de “outras coisas”, afinal, seguindo a sua
lógica, tais pessoas não têm serventia, são apenas “coisas” à espera da morte,
enquanto cumprem suas sentenças. Disse ela: “Essa é a minha opinião, já que vai ter
que morrer na cadeia, que pelo menos
sirva para ajudar em alguma coisa”.
O que a
Xuxa deixou escapar tem uma relação direta com o discurso bolsonarista de que
“bandido bom é bandido morto”. Ambos expressam, de forma evidente, o que é um
“cidadão de bem” para esta classe de privilegiados e as “boas intenções” do
indivíduo desumanizado, moldado pelos valores do capitalismo ultraexplorador, e
indiferente com o que e com quem não lhe interessa.
A Xuxa
mostra desprezo pela vida humana, mas usa sua fala cruel para sustentar sua
defesa pelos direitos dos animais. Os bolsonaristas, por sua vez, fazem a
defesa de assassinato de pessoas “ruins”, a pretexto de garantir a vida dos
“bons”. No fundo, eles tratam da mesma coisa: é preciso “limpar” a sociedade,
tirar dela os que desestabilizam a vida boa (de alguns) para manter o
equilíbrio ambiental e social (para outros). É preciso que os valores de alguns
continuem a prevalecer sobre os demais, isso é fundamental para garantir a “ordem”
desse tal “progresso” que pode ser tão bom para uns e tão danoso para outros.
Mas, a vida ‘é assim mesmo’, “uns nascem pra sofrer enquanto o outro ri” (disse
o velho Tim). O ruim deve ser, portanto, eliminado, tirado de cena. Quem está
preso é ruim, quem está livre é bom. Quem o Estado mata é ruim. O Estado, que
mata, é bom.
Bandido, crime, prisão e liberdade são
conceitos que, certamente, podem variar de sentido e intensidade, a depender de
quem julga e de quem é julgado, como revelou o STF, em recente pronunciamento sobre
a suspeição do ex-juiz Sério Moro, no julgamento do ex-presidente Lula, preso
por mais de 500 dias, sob acusações forjadas e, evidentemente, duvidosas. É
possível observar que esses conceitos variam também em outras situações. Vejam o
caso do assassinato da vereadora Marielle Franco que há três anos espera
resposta, mesmo que evidências indiquem sinais de onde partiu a ordem para o
crime. Ainda é possível ver esta “variação” nas liminares que insistem em
suspender a quebra do sigilo bancário de um dos filhos do presidente da
república, envolvido no escandaloso caso das “rachadinhas”.
Tanto um
discurso quanto o outro, seja o da Xuxa (defendendo os animais e condenando ao
estado de “coisas”, as pessoas nas prisões) ou o dos bolsonaristas, amantes do
fascismo, são defesas de quem se encontra numa posição favorável. Os que olham
a vida da torre de seu castelo e de lá planejam formas de “melhorar o mundo”,
segundo os seus interesses individuais. São pessoas que conhecem quase nada da
vida concreta e o pouco que conhecem é mera narrativa.
Como a
Xuxa, há muitos que fazem discursos ambientalistas sem que se traga para o
debate o problema central da concentração das riquezas. Eles não tratam da ação
ambiciosa e gananciosa dos mais ricos e de como estes avançam impiedosamente
sobre as terras, águas, floretas e populações inteiras, sem a menor preocupação
com a vida presente ou a futura, tudo em nome do capital.
Fica de
fora, em suas abordagens, a ação dos latifundiários do agronegócio com as queimadas
e derrubadas de árvores a serviço da monocultura da soja, da cana ou da criação
de bovinos para a exportação, que tem levado à agonia diversos biomas e
expulsado as comunidades tradicionais de seus territórios de origem. Esses
“ambientalistas”, não fazem referência aos empresários, inclusive artistas,
que, com seus hotéis e resorts de luxo, invadem áreas de ampla biodiversidade
para gerarem mais riqueza para si.
Elas
também não associam às suas “defesas”, a pauta da ausência de um Estado que
garanta direitos iguais a todos e todas, incluindo-se o direito a uma justiça
imparcial, à celeridade nos processos de pessoas que esperam julgamentos
justos, em condições precárias nas prisões, assim como, não pautam a
necessidade de uma política carcerária humanitária. Essas pessoas não
questionam o dever do Estado em assegurar uma polícia que não aja com a mesma
face e farsa dos “bandidos” que combate; um Estado que tenha uma política de
segurança pública como prioridade, ao invés de decretos que armam a população,
individualizando o problema da segurança e incentivando a violência.
Elas
também não discutem a necessidade de investimento
na ciência para que as pesquisas aperfeiçoem seus resultados e tenham a
vida e a ética como condições a serem preservadas em qualquer
circunstância. Elas vivem de falas
rasas, atuam no campo das comoções, com forte apelo social, mas não vão a fundo
nas questões que colocam em xeque o modelo de sociedade, que naturalizou a
exploração (das pessoas e dos recursos ambientais), como forma de
“desenvolvimento”, assim como, fez da indiferença, do individualismo e da
crueldade, valores sociais. Elas não fazem essa crítica porque foi esse modelo
que as colocou na posição privilegiada de “julgar” e condenar os outros tão
naturalmente.
A fala de
Xuxa, como bem disse ela, mais de uma vez, é como, de fato, ela pensa, é sua opinião, e é a opinião de outros
tantos, que na condição ímpar de olhar o mundo da janela de suas mansões, do
lugar “intocável” do poder do dinheiro, resumem tudo à solução da eliminação do
outro, dos que já são invisíveis e eliminados de muitas formas, nessa estrutura
social tão desigual. Como Xuxa, há muitos e muitas que seguem a sua lógica.
Não é um detalhe o fato de que o repórter que a ouvia tenha concordado com a sua fala. Na sociedade de classes com interesses tão díspares, é assim, o pensamento dos que dominam invade as entranhas dos dominados de tal forma, que eles passam a defender os valores de seus algozes como sendo seus e fazem isso sem sequer perceber essa infeliz contradição.
Xuxa e o discurso dos bolsonaristas expõem como pensa a classe dominante e como ela propõe tratar as questões profundas da sociedade brasileira. É o pensamento característico do tal "cidadão de bem" e que tem alimentado a profunda desumanização pela qual vimos passando, e o que é pior, conta com adeptos silenciosos que, vez ou outra, num "ato falho" (!?), como este da Xuxa, trazem o horror da verdade da nossa sociedade para a cena.
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