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Diversos e Livres
Por Ivânia Freitas*
Não tem
sido dias fáceis. Estamos há mais de um ano vivendo em suspense. Mentes lotadas
de informação, corações apreensivos. A morte nunca nos pareceu tão absurdamente
real como agora.
Clamamos
pela volta da vida “normal”, mas sempre me questiono: o que é esse “normal” com
o qual estávamos tão habituados e se quer voltar? Ao menos o mundo que eu
conheci que, certamente, não é diferente do que a maioria conheceu, estava um
caos.
Eu não vejo
a pandemia da COVID-19 como castigo Divino, mas como consequência da forma com
a qual tecemos a vida que chamamos de “normal”. O mundo antes da pandemia não
era melhor, a gente é que estava naturalizando seu caos. O corre-corre da vida,
a busca pela sobrevivência ou o conforto da vida focada apenas em si mesmo, dos
que nunca olharam ao seu redor, nos impedia de ver com mais atenção o que se
passava no mundo real.
Muita
gente sabe que estamos perdendo grande parte da diversidade do ambiente
natural, tão fundamental à vida, devido à prática da monocultura que se expande
com o agronegócio. O avanço dos empresários do agro, que se diz “pop”, pelas
terras indígenas, quilombolas, pelas florestas, serrado e caatinga, com seu
maquinário devastador; o excesso de agroquímicos e a ganância pelo lucro são os
maiores responsáveis pelo desequilíbrio ambiental que ajudou a cultivar o
Coronavírus e outras doenças já tão “íntimas”.
Juntemos
a isso, o mal hábito alimentar com excesso de açúcar, de álcool, comidas que são
imitações de alimento e que fazem parte do cardápio diário de crianças,
adolescentes, adultos e idosos. O consumo de alimentos ultrapocessados (biscoitos, salgadinhos, refrigerantes), sinônimo da vida moderna, rápida,
acelerada, tem sido um dos principais motivadores de doenças como câncer,
depressão, obesidade e as perversas doenças cardiovasculares.
Vidas corridas, pouco tempo em casa, medo de ser assaltado ou agredido em tantos atos de violência física diária nas ruas, nos bares, nas festas; pressão no trabalho, cobranças por desempenho nas tarefas profissionais e na vida social, são parte do estilo de vida do mundo normal que muitos têm saudade. Milhões de pessoas abaixo da linha da pobreza, reformas que retiram direitos trabalhistas, políticos, juízes e militares de alto escalão esnobando privilégios enquanto trabalhadores não conseguem garantir as três refeições diárias.
No
noticiário, vidas negras são ceifadas, trabalhadores/as do campo e da cidade
são diuturnamente ameaçados pelo Estado, pela política, pela justiça, pela
milícia e pela polícia. Jovens negros descem o morro sem saber se voltam para
suas casas com vida; mulheres andam assustadas com a constante ameaça de
estupro e assédio imoral permanente por parte dos “machos” acobertados pela cultura
patriarcal.
Os ricos
ficam cada dia mais ricos e os pobres cada dia mais vulneráveis. As
desigualdades assustadoras do “normal” são naturalizadas nos programas de TV,
onde ensinam o povo a admirar as mansões dos milionários; onde se tem como
deusa a artista que produz “arte” descartável para o capitalismo cultural e tem
nas pernas, na bunda ou nas melodias sofridas (ausente de poesia) seu sucesso e
enriquecimento. Tudo isso está no pacote do mundo e da dinâmica da vida para
qual muitos anseiam “voltar”. O discurso da volta à normalidade expressa o
quanto a maior parte das pessoas está distante, afastada, dormente, sonâmbula,
talvez, do mundo real – da vida como ela é.
Não deixa
de ser curioso o fato de que tanta gente só tenha descoberto agora a
importância de um sistema público de saúde e que existe um profissional chamado
enfermeiro que é indispensável nessa estrutura, ainda que sua média salarial,
em torno de R$ 3.400,00, seja tão inferior à dos médicos. Descobriu-se também o
quanto a elitização dos cursos de medicina é extremamente prejudicial ao país e
que é fundamental ampliar a oferta de cursos e de vagas nessa área. Os médicos
afirmaram seu papel importante no sistema de saúde, mas nada poderiam fazer se
estivessem sozinhos. A pandemia gritou que é preciso valorizar financeira e
socialmente os outros profissionais da saúde, tão requisitados na pandemia, mas
historicamente menos visíveis, a exemplo dos fisioterapeutas, odontólogos,
farmacêuticos e os técnicos de enfermagem (estes últimos em condições de
exploração ainda piores).
A
realidade do Brasil, ou parte dela, parece ter sido conhecida pela grande
maioria somente depois do “confinamento” social e da ameaça da morte batendo
com força na portada casa de cada um. Ainda assim, há quem enxergue o “antes”
apenas sob o olhar do livre (?) trânsito pelas ruas e das “baladas” lotadas de
pessoas e por isso, talvez, sintam tanta vontade de voltar à tal “normalidade”.
Mas, como disse o poeta, “a vida é real e de viés” e há mais no fundo do pacote.
O
Coronavírus abriu a caixa de pandora e mostrou como as desigualdades sociais
criam abismos cada dia mais largos entre ricos e pobres. Nesse momento, onde
a exposição social amplia as chances de contaminação, milhares de pessoas não
têm saída e precisam se expor ao risco de morte para garantir o sustento de
suas famílias. Aproveitando dessa necessidade vital, os ricos não se intimidam
em usar sua força contra os trabalhadores, ameaçando empregos, diminuindo o
salário, aumentando as horas de trabalho, impondo silêncios através do assédio
moral e, tudo isso, com o aval do Estado brasileiro, estritamente preocupado
com a economia e não com a vida. Vida e economia foram tragicamente colocadas
no mesmo patamar de relevância, com claro e evidente lugar de destaque à
última.
Aproveitando-se da naturalização dessa polarização infame, o Estado se desobriga de sua responsabilidade no provimento de políticas de apoio aos trabalhadores, incluindo a vacina em massa e joga nas costas da população a responsabilidade pelo “problema”. Nessa hora, onde se fala em economia e se usa os trabalhadores e seus empregos como discurso, o governo federal, que claramente abdicou da vida como prioridade, não apresenta à população que a vulnerabilidade pela qual passam os trabalhadores na pandemia deve-se, sobretudo, às reformas que sonegaram seus direitos e à priorização de uma política econômica que favorece aos empresários e não aos trabalhadores e isso não nasceu com o Coronavírus, mas já vinha em curso.
Recentemente,
quando Bolsonaro se viu acuado pelo setor econômico por sua incompetente
política, ele não foi se reunir com os sindicatos de trabalhadores para achar
as saídas, mas com os empresários em São Paulo para tramar formas de “salvar”
os seus interesses e dos empresários que, obviamente, não são os mesmos dos
trabalhadores, vistos apenas como mão de obra miserável, embora necessária para
gerar a riqueza que sustenta os luxos dessa pequena parcela da sociedade.
Mas, como
disse, muita gente ainda “dorme em berço esplêndido” ou ainda está de olhos
vendados e de joelhos nos “templos” ou cultos, onde a fé se perdeu no labirinto
que misturou orações pela vida, pela abertura do comércio (independentemente do
risco de morte) e pelos decretos do presidente defendendo armas (que tiram
vidas). Pois é, em meio a tudo isso, quando quase 400 mil pessoas morreram, há
quem se ocupe em defender, aprovar decretos de armas que têm mais pressa e
relevância social do que a vacina e a ampliação e destinação de recursos para o
sistema de saúde em colapso em todo o país.
O “novo normal”, então, seria o quê? Ignorar que a pandemia é consequência desse conjunto de fatores e tocar a vida como se quase 4 mil mortes diárias não pudessem ser evitadas? Devemos seguir agindo como se perder tantas vidas não fosse algo catastrófico? Devemos seguir achando que pobres e ricos estão no mesmo barco?
Não há volta à "normalidade" porque nunca saímos dela. Portanto, não há "novo normal", embora haja experiências novas dentro da velha "normalidade" assustadora de sempre. A pandemia é um grande espelho que evidencia que o que naturalizamos como "normal" está nos matando e não é de hoje! O Coronavírus chegou com poder letal, a morte chega mais rápido, sem dúvidas, e em escala planetária. Contudo, a fome, a cor da pele, o gênero, as condições escravizantes de trabalho, matam desde sempre! Tudo isso nos mostra que estamos vivendo de forma muito equivocada e que nada do que experimentamos agora estava no campo do inesperado, mas do previsível (numa das piores hipóteses!).
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