Diversos e Livres

Por Ivânia Freitas*

A conversa de hoje começa como uma releitura para a canção Construção, de Chico Buarque de Holanda. Na forte narrativa poética e crítica, Chico traz a fala de um trabalhador que teve seu último dia vivido como se empilhasse os blocos da parede de um prédio e que depois, como se não houvesse outra possibilidade de ir além, seguiu embriagado para cumprir destino fatal, “MORRER na contramão atrapalhando o tráfego”.

Lá, caído no chão, imagino eu, martirizado pelas dores do que não conseguiu alcançar, do salário que mal dava para pagar o aluguel e garantir as três refeições diárias da família, o homem deixou de ser “homem” e passou a ser um bêbado que impedia o percurso tranquilo dos que voltavam para suas casas. Para ele, nem uma oração, nem um pesar, apenas resmungos raivosos dos que já não se enxergam no outro.

Nessa releitura, eu decidi falar além dos que morreram e morrem desesperançados, esmagados pela fúria selvagem do capitalismo revestido de novos e embriagantes discursos, mas falar do que reagem, dos que enfrentam a lógica e seguem VIVENDO “na contramão atrapalhando o tráfego” natural da indiferença e da barbárie.

Dos que viveram e vivem dias difíceis por terem optado por enfrentar a poderosa força da ganância, do individualismo, e que ainda assim, seguem trabalhando coletivamente, dando as mãos, abrindo caminhos de luz em meio ao caos.

Eu falo tomando por referência os que perderam suas vidas lutando para que pudéssemos chegar até aqui ainda com alguns traços de humanidade, com resquícios de ternura na alma e com pacotes de esperança, combustível tão essencial para seguir em frente em dias tão duros!

Falo dos homens e mulheres que estão “fora de moda”, que escapam aos padrões, que insistem em seguir adiante quando o mais fácil seria ceder, que ainda recitam poesia, que choram com belas canções, que colocam a cara na rua e entoam discursos que destoam dos jargões. Falo dos que fazem a vida seguir em outra rota, ainda que isso lhes custe muito!

Eu falo desde Jesus o Cristo, que foi assassinado por defender que não há justiça sem amor e vice-versa até Marielle Franco, Chico Mendes, Dorothy Stang que também tiveram suas vidas abreviadas pela mesma defesa.

Falo ainda de gente como a aguerrida professora Dra. Celi Taffarel da Universidade Federal da Bahia (UFBA) que do alto dos seus quase 70 anos, segue com uma coragem inabalável na defesa de uma sociedade onde possamos viver plenamente a justiça e a igualdade para todos e todas.

Celi, que representa tantas outras pessoas, pode ser definida por um trecho de uma das “cartas de amor” de Ademar Bogo, uma “flor que atrai para si a responsabilidade, de responder a cada uma com doçura e verdade que, lutar e vencer é saber perfumar de amor à humanidade. Envolver cada pessoa num grande abraço e, depois, andar juntos os outros passos”.

Tomando a coragem, a rebeldia e inteligência sensível dessa grande mulher como referência, eu concluo a prosa de hoje reverenciando todos e todas que decidiram atrapalhar o fluxo da desumanização, da expropriação da vida e que se mantém firmes na construção árdua do tipo de sociedade que acreditamos ser, não apenas possível, mas necessária e vital.

Diferente da canção de Chico, eles e elas são e serão os que VIVERAM “na contramão atrapalhando o tráfego”. E, como diz Bogo, “quanto mais flor, mais perfume, mais semente. Quanto mais gente, mais força e mais esperança”.

Assim é!



* Doutora em Educação e Professora da UNEB - Campus VII.