O
cancioneiro popular canta que “corre um boato na beira do rio que o Velho Chico
pode morrer”. Daí implora: “não deixe o rio morrer senão o que será de mim que
só tenho esse rio pra viver”. De fato, por vezes, o apelo dos povos
ribeirinhos, que dependem das águas do rio São Francisco para viver, e mais,
constituem a sua identidade através da sua relação com rio, não é ouvido pelas
autoridades constituídas. Elas quase sempre apenas apoiam e viabilizam a
realização de grandes projetos, que prejudicam a vida dessas pessoas, assim
como contribuem para o processo de degradação do rio.
Regina, pescadora remansense/Remanso Velho/Imagem: Pandora Filmes/Cena do filme “Rio de Vozes” |
O
desmatamento e a prática do agronegócio veem cada vez mais fragilizando o rio
São Francisco, cujas águas banham as terras do semiárido brasileiro, ameaçando
a existência dos habitantes dessa vasta região. Certamente, a redução da
vitalidade do Opará dos povos indígenas irá fatalmente desintegrar as várias e
diversificadas culturas que margeiam suas águas. Não à toa, aquele cancioneiro
popular se questiona: “o que será de mim? O que será de José Serafim? Qual será
o destino do menino que nasceu e cresceu aprendendo a pescar surubim?”
Essas
interrogações frequentemente interpelam os povos ribeirinhos, entristecendo-os
ao perceberem a degradação do rio, que parece não ter fim. A tristeza vem
misturada com a angústia, sobretudo quando, voltando-se para o passado, a
nostalgia de uma época em que a pesca era bastante farta parece apenas
confirmar o pior que está por vir. Então mais uma vez o lamento ribeirinho
faz-se ressoar: “o que será de mim? O que será de José Serafim? Qual será o
destino do menino que nasceu e cresceu aprendendo a pescar surubim?”
Todas
essas situações e interpelações aparecem no filme documentário “Rio de Vozes”,
dirigido por Andrea Santana e Jean Pierre Duret, cuja estreia, nos cinemas do
Brasil, está marcada para o dia 17 de fevereiro. Porém, nesta quinta-feira,
20/01/22, a população de Remanso teve a oportunidade de prestigiar o filme,
numa amostra que aconteceu no salão Dom José Rodrigues, localizado no Centro
Social, ao lado da Igreja Matriz.
Andrea Santana e Jean Pierre Duret diretores de “Rio de Vozes”/Imagem: Panorama |
Santana e
Duret estão promovendo essas amostras nas cidades nas quais foram realizadas as
filmagens das cenas do documentário. Eles explicam que conviveram e filmaram,
por quatro meses, em 2017, as personagens, utilizando, para isso, a estratégia
do “cinema de observação”. Este é o quinto filme deles; o quarto no Brasil.
Andrea relata que todos eles falam de pessoas “consideradas invisíveis no mundo
de hoje”. Dessa forma, o objetivo da dupla é mostrar “a energia interior que
elas têm, sua força para continuar trabalhando”.
Já Jean
Pierre fala de seu sentimento com o povo do sertão nordestino. No seu olhar de
cidadão francês, o nordestino, aqui no Brasil, não é, de modo geral,
“reconhecido como uma pessoa que poderia participar desse Brasil, porque ele é
considerado, mais ou menos, como uma pessoa que não vale, sem importância, que
sua cultura não tem importância, o que ele pensa e faz não é considerado”.
Assim, ao filmá-lo, ao direcionar a ele um olhar atento, cria-se uma grande
oportunidade para que ele fale de si, do mundo e daquilo que ele carrega no seu
íntimo. O diretor de “Rio de Vozes” afirma, em seguida, que o que eles buscam
filmar são “coisas simples: o que eles [vivem, sentem] no trabalho, nos corpos,
na terra, nos olhos, na voz. Procurar essas coisas de um jeito íntimo”.
As pessoas
que aparecem no filme são sujeitos que, a despeito dos desafios e dificuldades,
encaram a vida com otimismo, humor e resiliência. Também é nítida a consciência
delas com relação ao impacto que a degradação do rio irá causar em suas vidas.
Aliás, é muito emocionante testemunhar o vínculo afetivo dessas pessoas com o
Velho Chico e o orgulho que elas têm de suas origens. A consciência de que o
suporte a partir do qual elas formam a sua identidade é o rio e a cultura. E
mais: que rio e cultura se interconectam, de tal forma que a destruição do
primeiro causará a dissolução da segunda. Isso justifica a organização dos
ribeiros para combater a destruição do rio. Nesse processo, destaca-se o papel
e a luta das mulheres. Elas são as verdadeiras protagonistas de “Rio de Vozes”.
Andrea
Santana, inclusive, confirma que houve uma intenção ao enfatizar o protagonismo
das mulheres ribeirinhas, que para corporificar suas lutas se organizam em
associações. Jean Pierre comenta que as palavras dessas mulheres revelam uma
“consciência política das coisas que estão acontecendo com o rio, também coisas
mais sutis como o desprezo com a língua”. Lembra que, no Brasil, se o sertanejo
não é muito considerado, as mulheres menos ainda. “Esse filme mostra a qual
ponto as mulheres são importantes neste país”.
Danduca e Regina, pescadoras remansenses/Imagem: Papo de Cinema/Cena do filme “Rio de Vozes” |
Depois da
exposição do filme, Irany da Silva Santos, conhecida por Danduca, da APPR
(Associação de Pescadores e Pescadoras de Remanso A-129), uma das pessoas que
foram filmadas, agradeceu a Santana e Duret, revelando que o filme a fez
renascer. De fato, diz Andrea “a coisa mais importante [do filme] é essa
relação que fica entre nós, o que a gente vive junto e o que a gente ainda pode
continuar vivendo”. Ao assistir ao filme inteiro (até então as personagens
tinham assistindo apenas partes da película), “é muito interessante ver o
sentimento delas de fazerem parte de uma comunidade em torno desse rio”, depõe
a diretora brasileira. Por isso, emenda Duret, elas choram quando se veem no
filme, pois foi dada importância as palavras delas. O reconhecimento, de fato,
pode ser um processo libertador.
Antes de
fazer sua estreia nos cinemas, “Rio de Vozes” foi exibido na França e em vários
festivais no Brasil.
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