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Imagem/Companhia das Letras |
A dica de
leitura da Aroeira para esta semana é um clássico da historiografia brasileira:
o livro da historiadora Laura de Mello e Souza, “O Diabo e a Terra de Santa
Cruz”.
O livro é
a tese de doutorado de Laura de Mello apresentada em 1986. A escrita é
elegante, prolixa e está fundamentada em uma pesquisa documental de tirar o
fôlego, realizada em arquivos da Inquisição.
Na obra,
Laura de Mello realiza um estudo sobre a feitiçaria e a religiosidade popular
no Brasil colonial. Seu recorte de tempo são os séculos XVI, XVII e XVIII, isto
é, o período compreendido entre o Renascimento Cultural e a Revolução Francesa
– a Modernidade. Isto porque foi na Modernidade, tempo de avanço da
racionalidade, que as perseguições às práticas mágicas se intensificaram. Diz a
autora:
“Por mais
longa que seja a duração das crenças e das práticas mágicas, o universo que
perscrutei tem balizas cronológicas e sentido histórico inequívoco, sendo o da
chamada Época Moderna ocidental. Tempo que assistiu à ascensão do capitalismo,
à montagem dos primeiros impérios coloniais modernos, à concentração – mesmo
que mutável e nunca total – do poder político em monarquias dinásticas, ao
confronto, diálogo, incorporação e destruição de culturas de natureza
variadíssima; tempo, enfim, ao longo do qual o pensamento das elites – que
acreditavam em bruxas e recorriam a elas – foi sendo ganho pelo empirismo
científico e pelo racionalismo [...] A modernidade que serve de pano de fundo
ao meu estudo é, portanto, a que se desenrola entre o Renascimento e a
Revolução Francesa, e que para certos pensadores, como o próprio Voltaire e,
mais recentemente, Max Weber, assistiu ao processo de desencantamento do
mundo”.
Em “O
Diabo e a Terra de Santa Cruz”, Laura de Mello e Souza analisa o fenômeno da
feitiçaria na sua relação inextricável entre cultura e religião, assim como a
relação da feitiçaria com as práticas cotidianas dos colonos brasileiros. Ela
mostra, dessa forma, que as pessoas recorriam às práticas mágicas a fim de resolver
problemas do dia a dia.
A tese
central do estudo de Laura de Mello é apresentar a feitiçaria, praticada no
Brasil, como um fenômeno do sincretismo, uma vez que ela incorporou e
ressignificou elementos da cultura africana, europeia e indígena. Importante
destacar que as elites dominantes, ao promover a perseguição a essas práticas
mágicas, acreditavam que conseguiriam impedir o desenvolvimento de uma cultura
negra própria em terras tupiniquins. Ledo engano. Nas palavras de Mello e
Souza:
“Já na
época de elaboração de Desclassificados do ouro, minha dissertação de mestrado,
chamara-me a atenção a presença marcante de feitiçarias e feiticeiros negros
entre a população pobre e marginalizada das Minas, que as devassas
eclesiásticas retrataram em suas práticas cotidianas frequentemente impregnadas
de magismo e bruxaria. Naquela ocasião, acreditava que a feitiçaria exercida
por esses homens pobres – livres, escravos e libertos – apresentava elementos predominantemente
africanos. Sobre eles incidia a carga reprobatória dos poderosos e também a do
homem comum, que na condenação de seus iguais buscava identificação com as
camadas dominantes e introjetava sua ideologia. Reprimindo-se a magia africana,
cerceavam-se as possibilidades de manifestação de uma cultura própria,
específica, que era a do negro e, mais grave ainda, a do escravo – sendo, como
tal, extremamente ameaçadora à ordem vigente. O aprofundamento da leitura de
obras específicas permitiu-me, entretanto, perceber que muito dos casos
presentes nas devassas, e até então tidos por mim como testemunho da
persistência de práticas africanas, diziam respeito a um substrato comum também
à feitiçaria europeia. [...] Por um lado, a feitiçaria colonial mostrava-se
estreitamente ligada às necessidades iminentes do dia-a-dia, buscando a
resolução de problemas concretos. Por outro, aproximava-se muito da religião
vivida pela população, as receitas mágicas assumindo com frequência a forma de
orações dirigidas a Deus, a Jesus, aos santos, à Virgem. Surgia assim um novo
problema: a especificidade da religião vivida pela população colonial, eivada
de reminiscências folclóricas europeias e paulatinamente colorida pelas
contribuições culturais de negros e índios”.
“O Diabo
e a Terra de Santa Cruz” convida o/a leitor/a a adentar no universo cultural de
pessoas comuns que viveram no tempo em que o Brasil era colônia de Portugal;
vivenciar sua lida diária, com seus desafios, angústias, alegrias e tristezas.
Brasil que, no imaginário europeu da época, ora era visto como um lugar
paradisíaco – com sua natureza exuberante e oportunidade de negócios –, ora
infernal, lugar habitado por gente desclassificada. Entre uma visão e outra,
uma terceira possibilidade: lugar do purgatório, para onde pessoas que
cometeram desvios na Metrópole eram enviadas a fim de purgarem seus pecados.
Fica a dica!
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